Animais

A antiga guia turística nos Açores que hoje se dedica às chitas em África

Vive entre os grandes felinos, hipopótamos e todos que precisam dela. Um dos mais novos é um leopardo que tem um nome português.
Faz de tudo por eles.

É ao lado do leopardo Rei que Lisa Kytösaho, 31 anos, tem passado grande parte do seu tempo nos últimos meses. Embora já trabalhe com os animais selvagens há mais de uma década, o felino foi o primeiro da espécie que acolheu a pedido de um jardim zoológico. “Não tinha a certeza de que queria cuidar de um leopardo”, confessa à PiT. “Na altura, o que sabia sobre eles era que quando são criados em cativeiros, não saem mais. E não gosto de os ver presos”, frisa. Mas pouco tempo depois, mudou de ideia.

Através de várias pesquisas, a protetora ficou a conhecer mais sobre a espécie e resolveu aceitar o desafio. Afinal, já tinha experiência anterior com as suas “primas” e o seu primeiro grande amor, as chitas. “Comecei a pesquisar para ver se conseguia oferecer os cuidados até conseguir devolvê-lo ao seu habitat natural e tive bastante apoio da minha equipa. É algo experimental que ninguém nunca fez. Mas com a experiência com as chitas, acho que pode ser possível”, partilha.

Nos primeiros dias, foi no quarto de Lisa que o felino foi mantido — um protocolo que a protetora segue para quase todos os bebés que recebe. Todas as manhãs, era o primeiro a ser alimentado. Agora, aos seis meses, o felino já tem um recinto só seu onde está a aprender tudo o que precisa. Segundo Lisa, os planos é que seja libertado quando completar dois anos.

“Essa é normalmente a idade que ele deixaria a sua mãe e ficaria mais independente”, explica. “Se ele se habituar à área antes, pode ser solto com ano e meio. Mas tudo depende, por exemplo, no quão bem ele está a caçar e na sua capacidade”, acrescenta.

Além disso, há outros fatores que podem afetar o tempo sob os cuidados, nomeadamente os custos. “É muito caro cuidar de um leopardo, mas ele tem a sorte de ter uma mãe louca que faria de tudo por ele”, diz, aos risos. “No fim do dia, se conseguir dar a liberdade a apenas um indivíduo, já significa muito. Importo-me com as espécies e a sua conservação. É a minha grande paixão e quero dar tudo o que posso a eles”.

O pequeno leopardo foi batizado em homenagem à língua portuguesa e faz jus ao nome que leva. Se tudo correr bem, é em Moçambique que vai ser libertado. O país onde se fala português será o “seu futuro reino”.

O pequeno Rei.

Apesar de Rei ter conquistado o seu coração, são muitos os animais que precisam da cuidadora. Pelas manhãs, por exemplo, Nyah é a primeira a ser alimentada. A caracal (também conhecida como lince do deserto) ainda é recém-nascida e dorme no quarto com Lisa. Em seguida, são os cavalos, os animais domésticos e outros selvagens que requerem cuidados.

“A rotina está sempre a mudar e sei que a que tenho agora, não vai ser a mesma daqui a duas semanas”, conta. No momento, além da pequena Nyah e dos outros animais que já são uma constante, Lisa está a alimentar com biberões alguns filhotes de leões e três órfãos de gnu, uma espécie nativa do continente africano cuja aparência é semelhante a dos búfalos.

“Alimento-os e depois solto-os por um tempo. Depois, dependendo da agenda, vamos caminhar ou temos algo planeado”, diz, referindo-se a todos os trabalhadores da Western Cape Cheetah Conservation, a reserva fundada por si na África do Sul, em 2011. “Pela tarde, organizo os animais domésticos e os cavalos e entre algumas atividades, tenho algumas reuniões e, às vezes, recebo pessoas na quinta que me ajudam com vários projetos como, por exemplo, na construção de um novo recinto. O dia a dia está sempre a mudar”, sublinha.

Velvet, a chita que escolheu o seu próprio futuro

Para Lisa, tudo começou com as chitas. E ainda hoje, continua a ser um dos principais focos do projeto. “Elas enfrentam muitos problemas e o principal é a perda de habitat”, conta-nos. “Às vezes, acabam por ser forçadas a irem para terras estrangeiras e são envenenadas, mortas ou presas em armadilhas. Também temos trabalhado bastante com pessoas que as fazem reproduzir em condições miseráveis para ganharem dinheiro”, refere.

Na reserva, a protetora já ajudou dezenas da espécie.“Na África do Sul, não temos chitas a andarem livremente, exceto nos parques e reservas naturais”, diz. “A maioria é salva em condições muito difíceis. Temos algumas que costumavam ser animais domésticos e sempre chegam muito vulneráveis, perto da morte e já perdemos muitas outras”, partilha.

A espécie é a grande especialidade de Lisa e apesar de já se ter despedido de vários animais que foram devolvidos à natureza, há outros que não podem ser libertados e acabam por encontrar um lar no seu santuário. “Alguns, infelizmente, não podem ser soltos por causa da sua personalidade ou de outras situações”, explica.

Velvet, por exemplo, é tão meiga que quando chegou a hora de ser solta, a felina implorou para voltar ao centro. “Quando a soltámos, ela começou a saltar de volta no nosso veículo como se estivesse a dizer ‘Por favor, leve-me de volta'”, recorda. Foi isso que Lisa fez e hoje, Velvet tem uma área só sua onde anda livremente.

Por outro lado, Iziba enfrentou outras dificuldades. Na altura em que estava a aprender a caçar, a região onde vive foi atingida por uma forte seca e a felina não teve tantas oportunidades de encontrar presas. “Ela não é uma boa caçadora, o que é um pouco triste porque tinha mesmo muito potencial”, frisa Lisa. “Devido às circunstâncias, não conseguiu aprender a caçar e agora vive no santuário. Elas [Velvet e Ibiza] são as minhas filhas”.

Apesar de já ter estado com muitas espécies, os felinos continuam a ser a sua grande paixão e quando questionada sobre os seus animais favoritos, sabe bem o que dizer. “É muito difícil escolher mas diria chitas, leopardos e jaguares”, diz à PiT. E é a personalidade dos felinos que mais a chama atenção.

“Eles são poderosos e podem magoar-te, mas escolhem não o fazer”, frisa. “Se for amiga deles, temos aquela relação em que eles confiam em mim e gostam de estar ao meu lado. Acho que esta relação que temos é o que mais gosto”.

A protetora acrescenta ainda que esta conexão também é importante para os próprios animais. “Se for uma pessoa espiritual, eles são criaturas muito poderosas e animais majestosos. Amo este vínculo que crio com eles e acho que há algo de sagrado nisso”, diz. “Sinto-me privilegiada que eles escolham ser meus amigos”, acrescenta.

Já resgatou um hipopótamo e teve de o carregar ao colo

O amor pelos animais esteve sempre presente na vida de Lisa. Quando miúda, lembra de querer “ter todos os animais do mundo” e adorava estar rodeada por eles. O seu primeiro companheiro foi um rato doméstico e aos 15 anos, começou a trabalhar num estábulo. A partir daí, não parou mais. “Fiz outro estágio numa pet shop e, aos poucos, fui mais longe, comecei a trabalhar com outras espécies e estudei para ser uma cuidadora”, conta à PiT.

Lisa é natural da Suécia mas foi em África que encontrou um lar. E antes disso, percorreu o mundo. Chegou a trabalhar como guia de turismo equestre na Ilha de São Miguel, nos Açores, e aos 17 anos, conseguiu um dos trabalhos que sempre sonhou num centro africano de vida selvagem. No ano seguinte, mudou-se para o continente.

“Foi uma aventura e não tive medo”, confessa. “Vários dos meus amigos perguntavam-me se não estava nervosa, preocupada ou como iria viver lá mas para mim, foi a coisa mais natural do mundo. Estava mesmo muito ansiosa e senti que era a coisa certa a fazer-se e apenas fiz. Adoro conhecer novas pessoas, novas línguas e culturas diferentes, portanto foi uma jornada maravilhosa e cheia de diversão”.

Pouco tempo depois, Lisa conseguiu realizar o grande sonho: abrir a própria reserva. “Senti que era a hora de trabalhar por conta própria e cuidar dos animais da forma que acho que eles precisam e mereçam, sem ter de seguir ordens de outras pessoas ou estar dependente financeiramente”, realça. Hoje, é na Western Cape Cheetah Conservation que faz o que mais gosta.

Além dos grandes felinos, a protetora já viveu algumas aventuras ao lado de animais mais pesados. Há alguns anos, resgatou um hipopótamo que foi rejeitado pela mãe e para Lisa, desde que começou a trabalhar na área, é uma das histórias que sempre carrega consigo. O pequeno Noah, como ficou conhecido o bebé, foi rejeitado pela mãe quando nasceu e apesar dos pais estarem a viver próximos, o pequeno não recebia os cuidados necessários.

“Ficámos quase um dia a monitorizá-lo para ter a certeza de que ele estava abandonado”, recorda. “Percebemos que estava sempre a nadar de um lado para outro, muito confuso, e decidimos entrar em ação”, diz. Lisa foi responsável por organizar tudo e pediu a ajuda de outros dois amigos, especializados em resgates e reabilitação de elefantes. “Os pais de Noah ainda estavam no mesmo sítio, portanto precisava de alguém que fosse uma espécie de barreira para conseguir salva-lo”, partilha.

Enquanto os dois homens atiravam laranjas em direção aos dois hipopótamos adultos, alimentando-os, Lisa entrava na água para salvar o pequeno Noah. “Quando entrei, tentei agarrar aquele bebé gigante que ainda era um recém-nascido mas não percebi o quão pesado era”, conta. “Tive de chamar o resto da minha equipa para me ajudar a carregá-lo até ao veículo e levá-lo ao centro”, acrescenta.

Na reserva, Lisa dedicou-se ao pequeno gigante. “Ele precisa de muito leite, era um trabalho a tempo inteiro, não fiz mais nada a não ser cuidar dele”, sublinha. “Ele viu-me como a sua mãe e fazíamos esses sons estranhos juntos”, conta, aos risos. O pequeno Noah, porém, não resistiu e acabou por morrer meses depois.

“Como nunca foi amamentado pela mãe, não recebeu colostro [ideal para os bebés produzirem anticorpos]”, explica. “Era como se fosse o meu filho e fiquei mesmo muito abalada com a sua morte. Mas uma coisa positiva é que no mesmo ano, a sua mãe teve outro bebé e, desta vez, cuidou bem dele”, remata.

Apesar de já ter perdido vários animais, a protetora continua a fazer o que pode para os salvar. E sempre que os liberta, embora tenha a consciência de que é “o melhor para eles” e confesse que é um “momento  agridoce”, tem sempre um outro pensamento em mente.

“Fico sempre a pensar ‘O que estou a fazer? E se eles não sobreviverem?’, mas no final do dia, se fosse uma chita ou um leopardo, preferiria ser livre e viver uma vida natural e, talvez, ser morto do que estar preso durante 15 anos num cativeiro”, frisa. “Acredito na liberdade de escolha, acho que é o que considero mais importante na minha vida e aplico isto a eles também”, conclui.

Para apoiar a reserva de Lisa, pode fazer doações diretas ou comprar produtos disponíveis na sua loja online — entre fotografias, quadros, etc. Para ajudar na reintrodução de Rei, o leopardo também tem a sua própria angariação de fundos.

Carregue na galeria para conhecer alguns dos animais que Lisa já ajudou.

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