Sempre que conduzo, olho para as bermas da estrada e penso quantas vidas foram deitadas nelas. Quantas encontraram o seu fim poucos momentos depois e quantas se salvaram. Foi numa delas que uma caixa foi depositada com dois cães. Dois cães que partilhavam laços de sangue e a mesma infelicidade. Um deles nunca conheceu o som nem a visão. Apenas estava na escuridão e sorria. Depois do processo de adopção ganhou uma vida. É nele que penso quando estou triste.
Hoje, enquanto estava parado no trânsito e procurava inspiração para escrever sobre ele para não me esquecer de nenhuma palavra, dei por mim a fazer o exercício que faço muitas vezes para tentar entender como é a vida dele. Fechei os olhos e tapei os ouvidos para me rodear de silêncio e ficar no escuro. Fico aflito, fico nervoso e não aguento muito tempo nesta situação. Ele aguenta. Ele consegue e sorri. Ele sorri sempre.
Deram-lhe o nome de Alex mas ele nunca saberá que tem esse nome. Dizem-lhe, ao ouvido, coisas bonitas e ele nunca as ouvirá mas agradece sempre com um beijinho, um abraço e um carinho.
O Alex é um Border Collie Double Merle. Resulta de cruzamentos que pessoas irresponsáveis continuam a fazer sem ter a noção de que parte da ninhada nascerá com o gene Double Merle. Parte deles são cegos, surdos ou cegos e surdos. A sua esperança de vida é menor sendo também mais propensos a problemas obsessivo compulsivos, entre outros problemas de saúde associados.
Esta é a parte científica. A outra parte é bem diferente. Perdi a conta das vezes que tive de responder quando mostro as suas fotografias e, quem as vê, as enche de palavras tristes. Chamam-lhe coitadinho, pobrezinho, desgraçadinho, um animal mal acabado…
Quando o conheci, esqueci-me que não me conseguia ver nem ouvir e enchi-o de elogios. Chamei-o vezes sem conta e fiz tudo aquilo que costumo fazer perante os outros cães. Obtive um sorriso e um abraço. Aprendi que apenas teria de lhe tocar para me reconhecer e, imediatamente, me saltar para cima para me encher de baba, beijos e amor.
Já chorei algumas vezes ao pensar nele e como está privado de tanta coisa. Penso é como é injusto ser privado de tantas as coisas lindas que o nosso mundo tem. Gostava tanto que visse a beleza que nos rodeia: o sol que oscila entre o amarelo e o vermelho, o som do mar quando chega à praia… as dunas que adornam o areal, as montanhas cheias de plantas que decoram os caminhos, riachos que nos encantam com o som da água que corre entre as pedras… e ele não pode sentir nada disso. Era isso que gostava de lhe mostrar…
Estava enganado. Fui enganado por ele. No meio daquela escuridão que os olhos lhe traziam e o silêncio que vivia nos seus ouvidos ele consegue ver, sentir e conhecer tudo. Não vê o vermelho do sol mas sente o calor que bate no seu pelo, não sabe que o mar é azul mas sente a sua frescura quando mergulha e nada com o sorriso que o caracteriza, não vê o verde das folhas mas elas falam com ele quando lhes tocam a pedir-lhe para abrandar porque existem obstáculos à frente… o vento que fala com ele que lhe toca ao passar…
Agora que penso nisso talvez eu esteja a ver as coisas de uma forma errada. Talvez não seja ele que necessite de ver o nosso mundo e talvez sejamos nós que tenhamos de entender como é que se consegue ser tão feliz com o que tem. É ele que, sem nem sabe o seu nome, nos consegue fazer sorrir como se fossemos a coisa mais bonita que viu naquele momento. Talvez sejamos nós os que vivem na escuridão e ele seja a luz que necessitamos para sorrir e agradecer por tudo o que temos.
Nunca irá ouvir estas palavras mas irei transmiti-las quando lhe acariciar novamente o pêlo.Nunca será um cão acabado como já lhe chamaram… nós é que acabamos sempre deslumbrados com a sua energia, alegria e carinho por onde passa… e somos nós que estamos muitas vezes cegos e surdos.
Entretanto, continuo a vê-lo chegar e não resistir a chamar-lhe pelo seu nome, a fazer sons para que olhe para mim enquanto o fotografo e a chamar a sua atenção para que olhe para mim porque, embora me digam que ele é cego e surdo, continuarei a vê-lo como um cão igual aos outros ou quiçá ainda mais perfeito.
Obrigado Alex e obrigado João Ferreira por lhe dares a melhor vida de sempre.
De seguida, carregue na galeria para saber mais sobre a vida de Alex.
AMIGOS PARA SEMPRE by Carlos Filipe é uma rubrica quinzenal da PiT, em que o fotógrafo Carlos Filipe, amante da causa animal, partilha com os nossos leitores o que viveu com os cães que fotografou e com quem privou. “Cães imperfeitos”, esquecidos pelo tempo e desprezados por quem quer adotar, por serem velhos ou doentes e exigirem cuidados.