Criar pombos para serem usados em eventos parece estar a tornar-se uma moda crescente. Casamentos, batizados, festejos de aniversário ou de vitórias de clubes de futebol são alguns dos motivos para uma celebração com largada de pombos que acabam, na maioria das vezes, por morrer se não forem resgatados. A acrescer, há quem os pinte — e se a tinta chegar à pele, pouco há a fazer e acabam por não resistir à sua toxicidade, como foi o caso de Flamingo, o pombo pintado de rosa para revelação do sexo de um bebé. Foi também o caso de um pombo pintado de vermelho, encontrado em Lisboa a 11 de junho após o Sport Lisboa Benfica vencer a Taça de Portugal. Agora, no início do mês, dois pombos-de-leque foram salvos mesmo a tempo.
Estávamos a 3 de setembro e João Miranda, membro do grupo “Freguesia de Algueirão-Mem Martins, sem censura”, no Facebook, publicou um post alertando para o facto de estarem dois pombos em cima do mesmo carro há pelo menos quatro horas. “Estão à frente da igreja azul. Estranho, não se afastam muito das pessoas, não saem do mesmo carro, as asas têm aspeto de terem sido pintadas. Alguém sabe do que poderá ser?”, perguntava.
Rapidamente se juntaram à conversa várias pessoas preocupadas com o destino dos pombos, tendo ficado a saber-se que teriam sido largados por alguém após o final de uma missa. Várias protetoras, preocupadas com as aves, tentaram resgatá-las. Mas estas, assustadas, voaram para o cimo da igreja. Ainda assim, não desistiram e no dia seguinte o primeiro pombo era resgatado por Rozeno Rute e Veronicashow Jacinto. O segundo continuou no cimo da igreja, amedrontado.
Dois dias depois, a 6 de setembro, o segundo pombo era também salvo, com recurso a uma armadilha própria. “Hoje foi um dia bom! Trouxeram a minha amiga para me visitar. Tinha saudades dela e desci logo para a cumprimentar. Também tinha muita fome porque não sabia procurar comida e quando a caixa caiu fui logo comer porque me senti finalmente segura. Agora estamos juntas de novo e vamos ser felizes”, escreveu Veronicashow Jacinto, em conjunto com Rozeno Rute, apelando a que todos parassem de compactuar com este negócio.
Pombos estão a recuperar bem
Carla da Silva Pereira, atenta desde o primeiro momento a esta situação, acolheu os dois pombos e levou-os a uma consulta da especialidade – exóticos – para serem observados. “O primeiro pombo a ser apanhado (consegue distinguir-se do outro porque os pés estão cobertos com peninhas, como se tivesse polainas) tinha uma fratura na ponta da asa; provavelmente por isso foi o primeiro e mais fácil de apanhar. No sábado, ao ver sangue na zona, apercebi-me da fratura. Teve de levar dois pontos e foi-lhe aplicada uma tala”, escreveu, ao dar conta da evolução das duas aves.
“Durante a consulta foram feitos exames às fezes, essenciais e muito importantes não só para verificar a existência de parasitas, como para determinar a medicação a seguir. Não foram detetados parasitas internos. No entanto, estão infestados de piolhos; vão fazer tratamento adequado durante três semanas; foi-lhes aplicada a primeira dose, e trouxemos mais quatro doses, duas para cada um. O pombinho das polainas tem consulta de seguimento marcada para dia 18, para reavaliação da fratura e mudança do penso. Já iniciou tratamento com anti-inflamatório e antibiótico. Vai tomar também um protetor hepático, para minimizar o efeito da medicação nos órgãos”, explicou.
Nesse mesmo post, Carla Pereira deixava um alerta: “Estes pombos e outros animais (rolas domésticas brancas) são criados em cativeiro e vendidos propositadamente para serem lançadas em casamentos, batizados, festas de revelação do sexo do bebé e outros eventos; são usados também em rituais de muitas religiões e cultos. Estes animais têm pouca capacidade de voo, não conseguem sobreviver sozinhos e acabam por morrer por inanição, atropelamento ou ataque de predadores, como os gatos. Por favor, não compactuem com esta realidade cruel”.
À PiT, Carla Pereira, que é também uma das administradoras das páginas “Pela Vida e Dignidade dos Pombos” e “SOS Pombos”, explica que o segundo pombo, apesar da fratura, deverá ficar bem. “Como a fratura ocorreu na extremidade da asa, a zona menos problemática, deverá voltar a voar”, disse.
São bebés e dificilmente sobreviveriam sozinhos
“Ainda são bebés. Estão a ser acompanhados pela médica-veterinária Joana Mendes, da clínica VetExóticos, que tem experiência com aves e com pombos, o que é muito importante. Por outro lado, tiveram sempre um comportamento de proteção um com o outro, são muito unidos, e não serão separados. Neste momento, estão separados, porque é preciso evitar que o pombo que sofreu a fratura faça muitos movimentos com a asa, mas mantêm contacto visual permanente um com o outro. Claro, na eventualidade de, entretanto, mostrarem sinais de incompatibilidade, terei de ponderar desistir da adoção conjunta. Neste momento, a situação é muito estranha para eles. Passaram por momentos muito stressantes e traumatizantes, e as reações não são as mais fiáveis, pois estão condicionados pela situação”, sublinha à PiT a ativista da causa animal.
Serve este caso também “para demonstrar os cuidados específicos de que as aves necessitam — e os pombos urbanos exigem, ainda, muita experiência da parte dos médicos. Estes cuidados veterinários são caríssimos, o que demove muita gente de ajudar — urge, pois, alterar políticas e criar uma rede médica acessível, e de boa qualidade, com todas as valências. Ressalvo ainda que cuidar de um pombo pode parecer um autêntico bicho-de-sete-cabeças, por ser um animal que já consideramos distante de nós (como os peixes, por exemplo), mas, com boas orientações e boa vontade não é nada difícil”, aponta Carla Pereira.

E depois de estarem recuperados? “Em princípio, depois da quarentena e de concluídos todos os tratamentos, ficarão para adoção. Confio que, como são pombos-de-leque, e brancos, seja mais fácil encontrar candidatos. Será condição inegociável que possam viver em relativa liberdade, num viveiro grande e à prova de predadores, ou em casa, e não condenados à prisão de uma gaiola. Ressalvo este facto por haver pouca gente que acolha e adote pombos, infelizmente”.
“O pombo urbano, um animal doméstico que abandonámos e que se adaptou à vida nas cidades, é um dos animais mais desprezados e ignorados. Não encontra água limpa nem alimentação adequada, e as políticas municipais passam apenas pelo extermínio em massa de animais dos quais devíamos cuidar e pelos quais somos responsáveis, contrariando não só o quadro jurídico que reconhece a senciência dos animais não humanos, como a Directiva das Aves. Algumas pessoas piedosas alimentam-nos, oferecendo-lhes pão por exemplo, que não é, de todo, um bom alimento, provocando-lhes doenças várias, acidificação das fezes e, até, a morte, mas é desesperante ver a fome destes animais passam nas nossas ruas — muitos comem terra, pedras, lixo… e é o que têm no papo quando acontece serem acolhidos”, lamenta a protetora.
Carla Pereira frisa que “as câmaras têm nas mãos o manual ‘Para uma gestão ética da população de pombos em meio urbano’, desde 2020, e que assenta na criação de pombais contracetivos a sério — mas continuam a preferir contratar serviços de ‘controlo de pragas’, que custam fortunas ao erário”. “Portanto, as informações que circulam acerca dos pombos são incorretas e dificultam muito qualquer hipótese de cuidar destes animais e de os ver adotados. Consegue imaginar a indignação das pessoas se, em vez de pombos esmagados nas estradas, no meio das cidades, se deparassem com cães? Qual é a diferença?”, questiona a ativista.
“Não fomentem este comércio”. Dos pombos e outros animais
Sobre o conselho que deixaria, Carla Pereira é perentória: “não comprem animais! Não fomentem o comércio de animais! Neste caso, não comprem animais para os usar como confetti ou foguetes, e para os atirar para a morte. Quem decide usar estes animais talvez não tenha a noção de que estão condenados a uma morte horrível. É uma inconsciência. Estes animais são criados, muitas vezes em condições indescritíveis, e vendidos com o único propósito de ‘decorar’ eventos, como casamentos, batizados e até festas de finalistas”.
Carla Pereira lamenta o rumo das coisas. “Compram-se pombos como quem compra balões ou outros acessórios para festas. São ainda utilizados em muitos cultos, com o propósito de complementar trabalhos de bruxaria e outros. São pombos ‘ornamentais’, criados em cativeiro e com fraca capacidade de voo, que rapidamente são atropelados ou apanhados por um gato, por exemplo. Isto se entretanto não morrerem por inanição. Ou anemia, dada a infestação de parasitas que muitos apresentam, como estes apresentam. Ou mesmo por causa da toxicidade das tintas — estes dois pombos tinham as asas pintadas. E ainda são bebés”.
“Algumas empresas garantem que regressam a casa, mas têm sido encontrados pombos destes diariamente, o que é assustador. O animal humano, que se acha superior e racional, deverá encetar um caminho evolutivo positivo que lhe permita não utilizar outros animais para seu próprio benefício, seja este monetário ou do ego; não pode continuar a utilizar seres vivos como objetos e como mercadoria, sobretudo à luz de um regime jurídico que os reconhece como seres sencientes. O que falta é fiscalização, medidas concretas, e alargar este regime a todos os animais, uma vez que estes pombos e outros são vendidos no OLX a 5€, ou menos, e não gozam de proteção rigorosamente nenhuma”, refere ainda a ativista.
Percorra a galeria para conhecer melhor estes dois pombos-de-leque, que tiveram a sorte de ser resgatados e acolhidos, estando agora a ter os melhores cuidados.