Animais

Kai vive com 17 pumas. “Eles têm todas as ferramentas para nos ferir mas não o fazem”

É proprietária de uma reserva que acolhe vários animais, focando-se nos felinos. Estanislao, um puma cego, é a sua alma gémea.
Fotografia: Mateo Silvestri.

Estanislao Monte chegou quando tinha três meses. Em 2017, o puma tinha pouco mais de um mês quando foi atropelado por uma ceifeira debulhadora, um equipamento usado na colheita. Com a perda do habitat, os felinos abrigam-se em plantações de milhos porém, muitas vezes são vítimas dos veículos agrícolas.

“Uma família passou três dias a vigiar a mamã puma que estava à procura de dois filhotes. Ela acabou por levar o mais saudável, mas deixou Estanislao, que já estava muito magoado e a ser perseguido por aves de rapina”, começa por contar à PiT Kai Pacha, de 54 anos. A cria foi então acolhida pela família que prestou os primeiros socorros, entre “várias suturas e cicatrização de outros ferimentos”.

Quando já estava mais estável, Estanislao foi encaminhado para a Pumakawa, a reserva de Kai na cidade argentina de Córdoba. “Quando o tirei da jaula, ele contorceu-se como se estivesse a ter uma convulsão”, recorda. “Depois percebi que estava com cólicas por causa da comida que lhe haviam dado, com todo o amor, mas com falta de experiência”.

Kai pediu aos salvadores que se despedissem da cria, para que assim conseguisse examiná-lo melhor. “Eles fizeram-no reiki, conversaram e aqueceram-no. Quando voltei,  já estava mais calmo”, partilha. Para a argentina, o momento marcou “a melhor saudação” da família que nunca mais viu.

Na altura a cria apresentava “movimentos atípicos”, como andar para trás e tremores constantes de stress. Foi visto por vários veterinários até que um oftalmologista conseguiu encontrar o problema: Estanislao sofria de cegueira total e irreversível.

Hoje, com seis anos, é o único puma que vive em casa com a cuidadora. “Ele é calmo e muito claro nos gestos que faz. Vejo-o como um animal tão expressivo, que ler os seus movimentos é algo instantâneo para mim”, realça. “Ele adora dormir durante horas e parece relaxado. Mas a verdade é que está sempre em alerta”.

Com Kai, o puma é “gentil e incondicional”. “Ele sente-se confiante, e eu também”, frisa. O único momento em que fica irritado é quando está a comer, e Kai acrescenta que o felino também não é muito sociável. “Estanislao é muito persistente a andar pelo espaço. Quando encontra um obstáculo, desvia-se e continua. Mesmo que volte a passar pelo mesmo lugar e encontre o mesmo obstáculo, vai contorná-lo novamente”.

Por ser cego, o puma precisa de vários cuidados especiais. De madrugada, Kai diz-nos que o felino chama-a “através de sons ou a roçar na porta do quarto” para sair. Pela manhã, por volta das sete horas, a cuidadora dá-lhe comida assim como a medicação que precisa. “Dou-lhe sempre no mesmo lugar e faço-lhe sons para que ele saiba onde está a sua bandeja”, realça.

Embora pareça corajoso, Estanislao tem medo das tempestades. E é no colo de Kai que encontra um refúgio. “Também ajudo-o a lidar com as altas temperaturas no verão, e as baixas no inverno”, acrescenta.

Uma parceria para a vida toda. Fotografia: Sebastian Lopez.

São marginalizados pela sociedade e a salvação de Kai

Kai Pacha tem a seu cargo 16 pumas. Mas para a argentina, serão sempre 17. Charola, um macho idoso, morreu há pouco tempo e a cuidadora prometeu ao felino que não o deixaria ser esquecido. “É difícil para mim aceitar que ele já não está  aqui. Por isso, prometi que até conseguir, contarei sempre com ele”, diz à PiT.

Embora atualmente não cuide dos felinos diretamente — com exceção de Estanislao, o puma cego —, está sempre rodeada por eles. “Cuidei pessoalmente de todos até há cerca de dois anos. Hoje em dia, ajudo a cuidadora a pesá-los e se necessário, na reposição de alimentação e limpeza. Observo-os, faço a vigilância e o controle”, explica.

No momento, Kai conta-nos que juntamente com os trabalhadores e voluntários da Pumakawa está a construir “novos ambientes” para os felinos. “Estou a pensar em como deixar o interior dos seus lares mais confortável”, conta.

Além disso, diariamente faz consultas em várias partes da Argentina para ajudar outros felinos em perigo. “Promovo campanhas para ajudar na sua conservação. Os pumas selvagens também fazem parte da manada que sinto dentro de mim”, frisa.

Para Kai, o amor pelos pumas em especial é facilmente explicado. “Eles têm todas as ferramentas, entre presas, garras, habilidade e mordida mortal, para nos ferir e não o fazem. Já as pessoas, têm menos e ainda assim, sentem uma maior vontade de causar danos”, sublinha. 

A proprietária acrescenta que os animais são “majestosos e marginalizados”. E embora sejam vistos como “prejudiciais”, considera-os benéficos. “Ouví-los é como entrar noutro pensamento e outro olhar sobre a sociedade e a natureza. Eles são uma porta para um mundo maior”, frisa.

 

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“Os animais eram os meus amigos, mais do que os meus colegas de escola”

Kai cresceu rodeada por eles. Quando miúda, em casa tinha pumas, macacos, corços e outros animais e lembra-se de “conversar e brincar” com todos. “Só depois que percebi que isso era algo ruim. As nossas tarefas domésticas não eram lavar a loiça ou colocar a mesa, mas sim limpar as jaulas e alimentá-los”, recorda. “Eles eram os meus amigos, mais do que os meus colegas de escola”, frisa.

A argentina lembra ainda de uma grande árvore que tinha no quintal e que marcou a sua infância. Por debaixo desta, colocava várias caixas e fingia que estava num jeep, a caminho da selva. “O meu mundo era esse”, sublinha. “A árvore tinha um galho grosso com uma curva anatómica onde eu conseguia deitar-me e na altura tinha a certeza de que ela fazia aquela forma só para mim”, diz.

Houve um dia em que durante uma brincadeira, um tordo apareceu e veio comer próximo dos seus pés. Kai resolveu batizá-lo de Curquero. “Não sei o porquê dele ter se aproximado de mim, mas deixou-me muito feliz”, realça. E aos cinco anos, ganhou também um macaco chamado Pancho, que pertencia ao seu falecido avô.

“Eu voltava sempre a correr da escola para almoçar com ele”, recorda. Hoje, tem a consciência de o que fazia na infância não era correto. “Estou a falar de algo que aconteceu há 50 anos, onde o mascotismo [ter animais selvagens como pets] ainda era comum”, frisa. “Com o tempo, ganhámos a consciência disso e agora a nossa mensagem é ‘Não ao mascotismo’. Mas não posso mudar a minha infância que de facto, sinto que foi mágica”, frisa. 

Por outro lado, apesar de o interesse pelos animais ter estado sempre presente na família, nem sempre estes eram venerados. O seu pai era caçador e só na década de 80 resolveu deixar a caça. “Houve uma altura em que ele percebeu o mal que estava a fazer e largou tudo. Ele mudou e começou a cuidar dos animais”, partilha. E a ideia de criar a reserva foi dele.

Em 1991, fundou a El Edén, um espaço de conservação de 25 hectares. Kai e os três irmãos visitavam-no durante os fins de semana e ajudavam-no com os animais nas férias de verão. “Assim que me formei, fui visitá-lo num fim de semana. Mas este durou 27 anos e estou cá até hoje”, brinca. “Senti que pertencia aqui, que era isso que me agarrava”, acrescenta.

Em 2009, porém, tudo mudou quando um incêndio florestal destruiu 90 por cento da reserva. Na altura esta já estava no nome de Kai e a argentina resolveu recuperar todos os danos que os fogos causaram. Foi aí que mudou o nome para Pumakawa, que significa “aquele que cuida com o sigilo de um puma”.

Hoje, além dos pumas, a reserva acolhe macacos, lamas, lebres, gatos selvagens, aves de rapina e animais de quinta. “Temos um espaço de primeiros socorros, onde recuperamos animais vítimas de acidentes rodoviários ou outros”, explica. Segundo Kai, a maioria destes conseguem voltar para a natureza. Caso não consigam, encontram um lar na reserva.

A reserva pode ser visitada de segunda a sexta, entre às 10 e 18 horas. Além disso, aceita doações e está sempre aberta para receber voluntários. Pode também apadrinhar um dos animais e contribuir com os seus cuidados diários.

Carregue na galeria para conhecer a Pumakawa e Kai, a mulher que vive entre os pumas.

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