Termino este ano a falar de gratidão. Penso que foi a palavra que mais usei desde que comecei a trabalhar com animais e principalmente a sentir-me vivo desde que, todos os dias, aprendo lições com eles. Quem era eu antes de conhecer este mundo? Era como muitos seres humanos: dava tudo como garantido e achava que vivia quando apenas existia. Se me dessem o poder de reescrever o dicionário iria inserir da definição da palavra “gratidão” a foto deste amigo que vos apresento hoje: o Kind.
No meio das muitas almas que me passam pelas mãos e tento ajudar da forma que consigo surgiu-me a fotografia deste ser. O Kind nasceu diferente. As patas não entraram em acordo e decidiram nascer diferentes.
O espírito nasceu perfeito. No meio de um apelo veio a sua primeira imagem. Um sorriso acoplado a um cão, cujas patas dianteiras não se desenvolveram mas o sorriso fazia-me quase não lhes dar atenção. Era diferente. Era perfeito. No meio das fotografias que fui vendo vieram as dúvidas de como seria a sua vida. Como se iria deslocar? Como conseguiria ter uma vida normal? Que caminho teria a sua vida?
As dúvidas depressa desapareceram quando no seu caminho se cruzou o meu amigo João Ferreira, que o abraçou com todo o seu amor. “Abraçar” é a palavra que me vem à memória sempre que falo dele. Não tenho maldade quando faço piadas sobre si, quando o vejo a nadar e digo que o seu ponto forte são as braçadas. Gosto de brincar com ele porque o seu olhar é de pura inocência e é isso que necessitamos no mundo…
Permitam-me que vos leve numa viagem. À viagem de quando nos conhecemos. Ficou para trás o local onde nasceu, onde foi olhado de lado, onde tudo parecia estar ausente de esperança…
O dia em que o conheci.
O dia em que te conheci, meu querido Kind.
Enquanto esperava que chegasses, tocava na rádio uma música daquelas bem emotivas em que a letra dizia: “O que o mundo precisa é de amor… é a única coisa que faz falta”.
Um barulho fez-me olhar para a porta e pensei que tivesses chegado mas não vi ninguém. Levantei-me e abri a porta mas não estava ninguém. Quando olhei para baixo estavas ali ao nível do chão a fitar-me com esses olhos gigantes e brilhantes. Ajudei-te a subir e sentei-me no chão a ver-te. Erguias a cabeça para olhar tudo em volta e foste explorando cada cantinho… O Boris colocou-se como tu estavas: rabo para cima e a cabeça ao nível do chão pronto para te desafiar para uma brincadeira. Aninhei a minha cabeça nos joelhos a olhar-vos.
Começaram a brincar um com o outro. Ele com a energia e os saltos gigantes e tu dando o teu melhor para acompanhar o seu passo. Perante mim estavam dois seres da mesma espécie brincando um com o outro. Não existiam julgamentos nem sentimentos de pena. Havia apenas curiosidade. Havia apenas amizade. Havia amor.
Quando o cansaço se abateu sobre os dois, sentámo-nos juntos e fitei-te. Tentaste saltar-me para o colo e encher-me de beijinhos. Peguei-te ao colo e abracei-te. O Boris encostou-se ao meu lado e ali ficámos um pouco… segredei-te ao ouvido que tinha muita admiração por ti. O mundo poderia ser muito cruel contigo, ofender-te, olhar-te de lado mas que sabia que terias muita força para dar a volta por cima. Tinhas uma família fantástica e serias um cachorrinho muito feliz. Sê feliz, meu querido Kind!
Quando cheguei à tua porta olhei para cima, mas tu não me viste logo. Deves ter achado que não estava ali ninguém. Quando viste que eu estava ali ajudaste-me a subir e sentaste-te no chão a olhar-me. Tudo no teu espaço era novo para mim e resolvi explorar tudo. Deparei-me com o teu cão que se colocou na mesma posição que eu estava e perguntou-me se queria brincar. Acho que ele não se apercebeu que era assim que eu me deslocava e não apenas uma posição para pedir brincadeira.
Quando lhe disse que era assim devido à deformação das minhas patas ele disse que nem tinha reparado. “Então? Vamos brincar?” Toda aquela brincadeira roubou-me a minha energia imensa e caímos os dois no chão exaustos. Sentaste-te ao nosso lado e abraçaste-me. Gosto muito de abraços, sabes? Recebo muitos. Disseste-me baixinho que me admiravas.
Falaste baixinho para o teu cão ouvir e ficar com ciúmes? Estou a brincar contigo. Não te respondi com palavras aos alertas que me deste, mas respondi-te com beijinhos e olhares. Eu sei que o mundo é um lugar assustador… sei que poderão dizer todas essas coisas e olhar-me de lado. Sabes o que descobri? Que o mundo é também um lugar maravilhoso.
Nestes meses de vida que tenho já conheci tantas coisas bonitas, pessoas fantásticas e sensações que me fizeram apaixonar todos os dias por ele. Tenho um família que me aceita como sou. Pega-me quando estou cansado. Tapa-me na cama quando tenho frio. Tem sempre um lugar para mim em tudo o que faz. O mundo é maravilhoso e mal posso esperar para crescer e continuar a explorá-lo. É como dizia a música que estava a tocar no teu rádio quando entrei no teu estúdio: “O que o mundo precisa é de amor… é a única coisa que faz falta”.
Que 2025 vos traga aquilo que todos estes meus amigos me trazem todos os dias: esperança, amor e sede de viver cada dia com esperança.
De seguida, carregue na galeria para saber mais sobre a vida de Kind.
AMIGOS PARA SEMPRE by Carlos Filipe é uma rubrica quinzenal da PiT, em que o fotógrafo Carlos Filipe, amante da causa animal, partilha com os nossos leitores o que viveu com os cães que fotografou e com quem privou. “Cães imperfeitos”, esquecidos pelo tempo e desprezados por quem quer adotar, por serem velhos ou doentes e exigirem cuidados.