O que deixamos para trás quando começa um novo ano? Tentamos deixar tudo o que nos magoou e apenas guardamos o que queremos que continue connosco: as boas experiências, as pessoas e os sentimentos. Para trás deixamos os amargos que se cruzaram no nosso caminho, as derrotas e as promessas de que este ano tudo será melhor. O ano passado terminou com uma visita que esperava ter há muito tempo.
Vira as suas fotografias em algumas postagens e já tinha demonstrado muito gosto em conhecê-la, saber um pouco mais sobre a sua história e poder, de alguma forma contribuir para a sua busca pela felicidade. A vida fora madrasta para ela mas gravou-se na sua pele como nome: La Vie.
Via nela muito do meu Boris por ser uma Podenga, pelas orelhas, pela forma como olhava nas fotografias. O pelo não tinha tanta cor, o corpo apresentava-se contorcido dando a mostrar o medo que nele habitava e o seu olhar…
O seu olhar foi o que me fez parar e olhar para as suas fotografias sem parar. Não existia cor nos seus olhos. Foram inundados por um branco pérola que ali fez a sua moradia. Não sei que cor teriam os seus olhos. Seriam castanhos? Seriam pretos? Naqueles “espelhos da alma”, como lhes costumam chamar, apenas existia vazio.
Foi a minha última visita no ano que terminou e, ao contrário das folhas do calendário que chegavam ao fim, apresentou-se ali um caderno em branco com muito para escrever.
A La Vie foi encontrada em péssimas condições. Além de invisual, estava desnutrida, com problemas de pele e leishmaniose não tratada e muitas outras complicações. Não sei há quanto tempo deixara de ver o mundo mas quando chegou perto de mim as suas patas já avançavam, uma atrás da outra, sem medo de explorar o que se apresentava à sua frente.
Encontrava-se em família de acolhimento e já tinha sido apresentada e feito amizade com caminhas quentes, abraços calorosos e amigos para brincar.
Sentei-me no chão para que pudesse vir ao meu encontro. Os seus ouvidos, nariz e patas tinham assumido, com sucesso, a função que outrora fora dos seus olhos e depressa me encontrou. As minhas mãos tocaram, de leve, no seu pelo para que não se assustasse e ali ficámos um pouco enquanto ouvia um pouco da sua história. Os olhos haviam sido removidos e no seu lugar já crescera pelo. O seu corpo demonstrava bem a luta que era travada entre a pele que havia sarado e a que, a muito custo, medicação e dedicação, lhe seguia o caminho.
Encostei o meu rosto ao dela e recebi um beijinho. Segredei-lhe que estava tudo bem e recebi um abraço. Abracei-a suavemente e recebi, sem que ela soubesse, uma dose de esperança de que iria ficar bem. As boas energias à sua volta diziam-me que iria ficar bem.
Por muito que conheça animais invisuais fico sempre com uma luta interior entre a tristeza que não consigo deixar de sentir e a certeza de saber que ficarão bem porque se adaptam muito bem à sua nova condição e o mundo continua a apresentar-se colorido apesar de o sentirem de outra forma.
Os flashes que iam marcando da fotografia não lhe criaram qualquer confusão e os seus “novos olhos” mostravam-lhe apenas a manta fofinha que lhe beijava as patas e o seu dorso sabia que, de tempos em tempos, viriam mãos acariciá-la.
A boca recebia biscoitos entre fotografias e ouvia o seu nome entre carinhos. As suas patas depressa lhe disseram onde terminava o banco onde estava e o seu corpo depressa abandonou a posição defensiva que tinha ao início.
No final sentámo-nos novamente no chão e segredei-lhe que assim como o ano estava a terminar também a sua vida anterior ficaria para trás. Nela ficariam os anos que a deixaram naquele estado, as noites frias, a fome que terá passado e a doença que quase a levara… O medo de pessoas já não residia nela e era bastante sociável tanto com cães como com gatos. O que viria só seria melhor.
Antes de partir, desenhei uma linha com o meu dedo no chão que ela atravessou sem se aperceber mas que seria o seu novo ano. Um ano em que sei que encontrará uma nova família e apenas conhecerá aquilo que não conhecera até ali: o amor.
Diz-se que quando se fecha uma porta abre-se uma janela. Quando essa janela se fecha abre-se o coração porque nele existem todas as portas e janelas que a La Vie e todos os que conseguem ser resgatados terão para lhes mostrar como o mundo pode ser bonito, as pessoas não são todas más e ainda existem muitos caminhos para percorrer.
De seguida, carregue na galeria para saber mais sobre La Vie.
AMIGOS PARA SEMPRE by Carlos Filipe é uma rubrica quinzenal da PiT, em que o fotógrafo Carlos Filipe, amante da causa animal, partilha com os nossos leitores o que viveu com os cães que fotografou e com quem privou. “Cães imperfeitos”, esquecidos pelo tempo e desprezados por quem quer adotar, por serem velhos ou doentes e exigirem cuidados.