Nada me parte mais o coração do que ver animais serem devolvidos sem que lhes seja dada uma oportunidade. Poderia encher um caderno com as desculpas mais esfarrapadas que tenho ouvido para se devolver um animal que se adotou sem que lhe seja dada uma oportunidade. Uma delas nem duas horas ficou na suposta “familia para sempre” porque se coçou. Outros porque ladram. Outros porque respiram, deitam pelo, exploram…
Não recebem qualquer oportunidade para aprender e são descartados como se fossem lixo. Felizmente, existem outras histórias em que o tempo que recebem para confiar é o que necessitam. São abençoados com paciência, calma e muito, muito, muito tempo. Esta semana perdi um amigo que, juntamente com mais alguns, é um dos melhores exemplos de como a paciência dá frutos e a confiança que perderam regressa. O seu nome é simples, como ele também era: Menino. O meu Menino.
As primeiras páginas da sua vida foram escritas na rua: debaixo de árvores, procurando proteger-se do frio, comendo o que encontrava… sobrevivendo.
Mal sabia Maria que, em 2013, num dia de chuva a sua vida iria mudar ao tentar alterar a vida de um pequeno ser que se cruzou no seu caminho. O medo que o movia não permitiu a Maria de o ver bem mas, mesmo assim voltou atrás para o procurar de novo. Não foi uma tarefa fácil porque ele se escondia. Começara ali, para ambos, uma rotina que, sem que soubesse, viria a dar frutos.
Durante vários meses aquele caminho tornou-se uma constante na vida de Maria que, religiosamente, ali se deslocava para o alimentar e para o Menino, que vira os seus dias de fome chegar a um final com comida constante vinda de um par de mãos que não lhe queria fazer mal. Cada dia trazia duas visitas a este forasteiro que insistia em esconder-se e a esperança de ganhar a sua confiança tornava a missão de Maria cada vez mais forte.
Os dias tornaram-se semanas e os meses, rapidamente, vieram tomar o seu lugar. É incrível como o tempo passa depressa quando deixamos que o coração nos controle o corpo. Os cerca de seis meses passaram num ápice e, aos poucos, conseguiu que o Menino se fosse encaminhando para a sua propriedade ao seu ritmo. O corpo cheio de marcas e o olho que há muito que lhe deixara de mostrar o mundo foram os motivos mais que suficientes para que Maria abraçasse esta missão porque só ela o poderia ajudar. A adoção acontecia ali, ao seu tempo, sem papéis nem condições: apenas amor.
Aos poucos ambos deixaram aquela estrada e foram-se aproximando do terreno onde vivia Maria com os seus outros cães.
As marcas que lhe desenhavam o corpo suscitavam a suspeita de Leishmaniose, que se viria a confirmar. A medicação tornou-se uma constante que tomava juntamente com os carinhos diários que começava a conhecer.
A introdução na matilha teve de ser feita de forma gradual mas entrar dentro de casa seria uma nova batalha para ambos. O seu instinto de cão de rua levavam-no a passar os dias fora, nos seus passeios com destino desconhecido deixando Maria com a dúvida se ele voltaria ao final de cada dia… e ele voltava.
As marcas foram desaparecendo, deixando o brilho voltar-lhe ao pelo, mas uma das maiores, na traseira, insistia em permanecer. Aquela marca específica permanecia impune tendo-se já tornado num calo. As dúvidas levaram a que Maria o seguisse num desses passeios diários para descobrir o que faria ele no seu dia-a-dia e a origem da misteriosa marca fora desvendada: um dos sítios prediletos do Menino era uma ribeira que existia no terreno e o Menino passava os seus dias a escorregar nas pedras que a circundavam.

O cão de rua começou a deixar-se seduzir pelas mordomias da casa e, aos poucos, tornou-se o cão mais viciado em caminhas fofas que existia na matilha de Maria.
Os dias tornaram-se cheios de corridas com os seus companheiros de casa, as noites eram envoltas de carinhos, almofadas fofinhas e carícias no pelo. Ficaram para trás os anos de rua, de frio e de fome.
Fico a pensar se ele se questionava do tempo que perdeu a confiar na Maria e que poderia ter sido feliz ainda mais cedo, sem ser necessário aguardar tantos meses…
A confiança é algo que se constrói aos poucos e o Menino precisou do seu tempo para confiar em alguém quando tudo parecia conspirar contra si. Vamos sempre a tempo de conhecer a felicidade mas, por vezes, temos de lhes dar o tempo que necessitam para encontrarem o seu lugar na casa, na matilha, no mundo.
A casa de Maria ficou mais triste esta semana porque o seu Menino partiu. Deixou de aquecer a caminha mas continua a correr nos campos que circundam a casa, continua vivo nas flores que dançam com o vento e a escorregar nas pedras da ribeira, como tanto gostava, porque o tempo é o que fazemos dele e o Menino ensinou-me isso: nunca é tarde para ser feliz. Voa alto meu Menino porque todos os que ainda precisam de tempo para confiar como tu necessitaste também irão encontrar a sua Maria.
Dêem-lhes tempo porque eles nos darão o bem mais precioso que têm: a sua vida.
De seguida, carregue na galeria para recordar a vida de Menino.
AMIGOS PARA SEMPRE by Carlos Filipe é uma rubrica quinzenal da PiT, em que o fotógrafo Carlos Filipe, amante da causa animal, partilha com os nossos leitores o que viveu com os cães que fotografou e com quem privou. “Cães imperfeitos”, esquecidos pelo tempo e desprezados por quem quer adotar, por serem velhos ou doentes e exigirem cuidados.