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Survivor: “Todo o teu corpo era dor. Hoje és um orgulho para mim”

O pequeno sobrevivente recuperou-se dos traumas físicos e fez o possível para ser adotado. Até hoje espera um lar no Algarve.
Está para adoção na Animal Rescue Algarve.

Sabem quando enchemos o peito de orgulho para falarmos de amigos nossos? Tenho dores permanentes por fazê-lo tantas vezes. É uma dor boa porque é um sinal de que tenho mais um motivo para encher o meu peito de coisas boas. É a única dor que consigo aceitar. As do coração já se tornaram meras contrações de tão comuns que se tornaram. Foste uma delas, sabias, Survivor?

Lembro-me quando recebi a tua primeira fotografia. Foste daquelas lágrimas bem fortes. Daquelas que apertam e chamam outras para compor ainda mais o quadro. Hoje és apenas um dos meus motivos de orgulho. Conheceste a dor como nunca conhecerei. Todo o teu corpo era dor. Olhar para ti era doloroso. Vou confessar-te algo: a primeira vez que fiz a tua fotografia fechei os olhos logo de seguida. Foi o meu maior erro.

Não o deveria ter feito porque não consegui ver o teu olhar. Hoje, quando vejo as tuas fotos ainda choro. Não foi um choro de tristeza, sabes? Nunca o fiz quando pensei em ti. Chorei por te ver cada vez mais recuperado. Sem saberes, já estiveste em muitos sonhos meus. Já te levei comigo em pensamentos muitas vezes e pergunto por ti muitas vezes. E encho o peito a contar a tua história. Enquanto te fotografava comecei a reviver a tua história enquanto via o teu corpo cada vez mais recuperado.

Que te aconteceu, meu pequenino? Conta-nos a tua história.

Não te sei dizer quanto tempo estive naquele canil. Dias, semanas, meses…  A única coisa que me mostrava que o tempo ia passando eram as minhas feridas que iam piorando cada vez mais. O nariz, a pele, as patas… Cada uma das minhas patas contava uma história e uma delas até o osso tinha exposto. A minha cauda perdera todo o pelo e estava em carne viva.

A única coisa que não se encontrava em ferida era o meu coração, que continuava a bater na esperança de alguém olhar para mim. Perdi a conta aos que viravam a cara quando olhavam para mim e podia escrever-te numa folha os nomes que me chamaram todos com muita pena à mistura. Quando vi aquelas raparigas do abrigo passar pela minha box, esperava aquilo que sempre tive: olhares rápidos. Olhares de pena. Enganei-me. Elas pararam. Perderam tempo comigo.

No meio das minhas dores dei-lhes um beijinho nos dedos que passaram pela grade e ofereci-lhes o melhor que tinha: o meu olhar. Tentei dizer-lhes para me levarem, para me tirarem dali. Ficaram algum tempo comigo mas seguiram o caminho. Uma delas ainda voltou a cara e ofereceu-me um sorriso mas continuou o seu caminho.

Sentei-me a vê-las desaparecer mas algo em mim me disse cá dentro que não iria ficar ali. Iria segui-las. Hoje não morreria aqui. Mesmo com dores, saltei. Canalizei a minha força contra aquele fecho da porta como se a minha vida dependesse disso e bati contra ela. A cada tentativa falhada que me levava a aterrar impulsionava-me ainda com mais força contra aquela barreira metálica que me poderia mudar a vida. As dores davam-me ainda mais força para saltar até que o ferro desistiu e o trinco cedeu.

Que fizeste tu, meu querido Survivor?

O que fiz? Corri. Corri como nunca correra antes. O ardor que me aquecia as patas e me dissuadia de continuar não foi suficiente para me parar. À medida que passava pelas outras boxes todos se despertavam e ladravam. Tu não entenderias mas eles diziam “Corre! Corre! Corre!” Entrei pela sala cuja porta ficara entreaberta e vi-as. Elas ainda estavam lá. Saltei-lhes para o colo e pedi-lhes para me levarem.

E que fizeram elas?

Elas estavam a tratar da papelada para me levar. Elas iam levar-me. E aí tudo mudou, sabes? Não te posso dizer que foi tudo fácil. Foram muitos meses de recuperação e senti tantas dores… Sempre vivi rodeado de dor mas aquela era diferente. Era dor que me segredava ao ouvido para ter calma porque estava a curar-me. Chorei baixinho. Não queria que me vissem a chorar porque me tratavam com muito carinho. Não estava habituado a ser acarinhado daquela forma. Ao início desconfiava mas ela acalmava-me.

Quem era ela?

Foi a menina que me deu o sorriso antes de me dar a força que precisava. Foi ela que cuidou das minhas feridas. Era ela que perdia horas comigo quando eu, aterrorizado, não queria passear com medo de tudo e todos. Eles diziam que ela era a minha família de acolhimento. Eu chamo-lhe Marlene. Foi ela que me ensinou o que era ter uma casa. Fui com ela para casa e tudo foi novo para mim. Conheci novos amigos, que vivem lá, e ganhei direito a viver numa caminha.

Adoro as camas felpudas e a hora da refeição é a minha preferida porque eles, todos os dias, comem coisas diferentes com cheiros que me fazem salivar. A parte que menos gosto é quando ela tem de ir trabalhar. Fico triste por momentos mas aprendi algo que nunca soubera antes: brincar. Ensinaram-me a brincar e tem sido isso o que me tem ajudado a passar os meus dias enquanto espero que ela regresse.

E agora, querido Survivor?

Agora? Agora é como me viste na sessão fotográfica. Continuo a ser apaparicado por todas as pessoas, vivo rodeado de carinhos e voltei a confiar nos seres humanos. Não te vou mentir que ainda tremo um pouco quando conheço pessoas novas mas tem sido uma descoberta diária. Comecei a ganhar pelo. Não penso que o meu nariz volte a recuperar mas, como me dizem, sou único e especial. Sei que me olharão com admiração, alguns acharão estranho mas ganharão confiança assim como eu ganhei.

Que te falta agora?

Todos os dias converso com a Marlene sobre isso. Quando me aninho no sofá ao pé dela e ela me acaricia o meu pelo, olho para ela e digo-lhe sempre aquilo que a faz sorrir e ela me abraça com força, enche-me de beijos  e segreda-me com carinho que tudo fará para que eu encontre uma família que me aceite como sou, com a leishmaniose que vive comigo e as minhas medicações, com a minha carência de beijinhos e o meu olhar que faz todas as feridas parecerem secundárias.

E que lhe dizes tu?

Estou pronto para ser feliz.

O Survivor está para adopção responsável ao cuidado do Animal Rescue Algarve, em Loulé. Caso tenha interesse em adotá-lo, por entrar em contacto com a associação através do Instagram, Facebook ou telefone (289 462 384)

A seguir, carregue na galeria para conhecer Survivor.

AMIGOS PARA SEMPRE by Carlos Filipe é uma rubrica quinzenal da PiT, em que o fotógrafo Carlos Filipe, amante da causa animal, partilha com os nossos leitores o que viveu com os cães que fotografou e com quem privou. “Cães imperfeitos”, esquecidos pelo tempo e desprezados por quem quer adotar, por serem velhos ou doentes e exigirem cuidados.

 

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