“Já tivemos alguns animais devolvidos (…) mas um animal ser devolvido duas vezes é uma estreia para nós. Uma estreia amarga e revoltante. Que nos deixa tristes e com a sensação de que falhámos novamente para com este cachorro. Da primeira vez, o Tobias foi devolvido ao final de duas semanas. Da segunda vez após apenas seis dias. Mesmo com alertas acerca dos motivos da devolução anterior, mesmo connosco a implorar que tivessem a certeza que estavam à altura do desafio, pois não queríamos que fosse devolvido outra vez. Mas foi. O ‘monstro’ Tobias, de três meses (…) ficou hoje de novo aos cuidados da associação”. (9 de abril de 2022, Pêlo na venta — grupo de proteção animal de Ansião)
“Lembram-se do Tomás? Foi adotado e devolvido pouquíssimo tempo depois porque, segundo, os adotantes ‘mordia’. ‘Nada acontece por acaso’, é o nosso lema de vida. Aqui está ele, maravilhoso e completamente integrado nas rotinas da família que o adotou depois. Afinal não ‘morde’”. (31 de maio de 2022, Canil da Aroeira AOAA Almada)
“E a Jade está para adoção. Vamos ver se desta vez lhe arranjamos uma família a sério e de verdade, daquelas que não desprezam o animal à primeira dificuldade. Tem seis meses, vacinas, está esterilizada e tem tudo em dia. É uma cadelinha doce, meiga, carente e inteligente. Um amor. Está na zona de Oeiras. Quem a devolveu vai para a lista de maus adotantes, não são pessoas capazes de cuidar de um animal”. (1 de junho de 2022, protetora Mónica Silva)
As histórias do Tobias, do Tomás e da Jade não são únicas. Estes são apenas alguns dos imensos animais que são devolvidos a associações e canis de onde foram adotados — isto quando não são, pura e simplesmente, abandonados na rua.
Sem que haja números oficiais, a PiT sabe, através de vários contactos que fez com associações, instituições e entidades oficiais, que cerca de um terço dos animais são devolvidos algum tempo depois. Alguns passados dois ou três dias, outros após muitos anos. São cães e gatos que ganham traumas, muitos deles deixando de comer e definhando na tristeza até morrerem.
A PiT falou com várias associações e entidades oficiais, que não têm números concretos. É uma realidade escondida, mas que deve ser denunciada. Mas, na maioria, preferem sublinhar a importância de se fazer uma boa triagem no processo de seleção das famílias adotantes.
Essa triagem tem as malhas cada vez mais apertadas. Não só os candidatos têm de responder a inquéritos exaustivos como devem estar também, na maioria das vezes, disponíveis para abrir a porta de casa e receber a visita de quem os deu para adoção para se confirmar que está tudo a correr bem.
O que leva à devolução de um animal?
Ainda assim, as devoluções continuam, com os animais — por vezes rejeitados duas e três vezes — a ganharem traumas e a terem dificuldade em criar laços. Um estudo sobre os fatores que levam à devolução de animais, levado a cabo nos Estados Unidos e publicado em julho do ano passado, refere que “tutores jovens ou de primeira viagem, cães e gatos mais velhos e casas com crianças são parâmetros que parecem contribuir para uma maior probabilidade de insucesso nas adoções”. Contudo, acrescenta a investigação, “nos casos em que os tutores levam os animais ao veterinário, permitem que eles durmam na cama com membros da família ou que frequentem aulas de treino parece haver uma menor probabilidade de devolução”.
As questões comportamentais figuram no topo da lista dos motivos para devolver cães, gatos e coelhos. No entanto, a incompatibilidade com outros animais e questões de saúde dos tutores (especialmente alergias) também foram reportadas.
Por cá, não é muito diferente. A maioria das associações refere as mesmas “desculpas esfarrapadas” que lhes são apresentadas. Divórcio, desenvolvimento “súbito” de alergias, nascimento de um bebé, mudança de casa e morte do tutor (sem que alguém da família esteja disponível para ficar com o animal) estão entre as explicações mais comuns.
Por esta razão, muitas associações, além de fazerem um apertado processo de seleção, recusam-se a entregar animais para adoção no Natal (“os animais não são presentes”, defendem) e em datas próximas de sextas-feiras 13 (especialmente gatos pretos e brancos). Mas, por mais cuidados que haja, é quase sempre um “golpe de sorte” encontrar a família certa, responsável e cuidadora.
Maioria das justificações são desculpas
“Perguntam-nos, por curiosidade, quais são as desculpas que as pessoas nos dão quando querem devolver um gato. O Zango foi devolvido hoje e nós contamos-vos tudo o que nos foi dito. Há uma semana disseram-nos que foi a melhor decisão da vida adotar o Zango, que ele era amoroso, brincalhão, que só queria miminhos, que estava a dormir na cama dos tutores, que era amável e que o adoravam. Foram estas as palavras utilizadas.
Hoje disseram-nos que afinal não queriam um gato do tamanho dele, mas sim bebé. Que somos mentirosas e demos um gato adulto e não um bebé. Ele também arranhou o sofá, subiu às mesas e deu dentadas. E claro, a culpa é toda nossa. E aqui está ele, um dos gatos mais amorosos que já tivemos, fechado outra vez numa jaula. Triste e sem perceber ainda o que está a acontecer”. Este post, publicado a 27 de maio pela Ajuda a Alimentar Cães, é mais um exemplo dessa “falta de sorte” de alguns animais.
À PiT, esta associação madeirense diz que “infelizmente, vários animais são devolvidos, normalmente devido a separações ou porque o animal cresceu demasiado”. “São muitas as desculpas usadas”, referem, não dispondo contudo de um número exato das rejeições.
Os números em Portugal
Já a ASAAST — Associação dos Amigos dos Animais de Santo Tirso apresenta um cenário menos sombrio. “A nossa de devolução é pequena porque raramente damos cães. Temos um processo de adoção bastante criterioso”, referem.
O mesmo sucede com o Canil da Aroeira — AOAA Almada, cujos voluntários apontam que “felizmente” têm “uma taxa de devolução diminuta”. De igual modo, o Grupo de Amigos do CROAC de Sesimbra salienta ter “uma taxa de devoluções muito pequena”. “Os casos que já aconteceram têm mais a ver com alterações drásticas na vida das pessoas”.
Por seu lado, a Associação Projecto JAVA refere que “durante este ano, e até à data, já houve algumas devoluções — não muitas, mas algumas”. “Tivemos três delas que foram um pouco diferentes, uma delas dez anos depois e as outras seis anos depois de terem sido adotados”, acrescenta, salientando que “a JAVA recebe sempre os cães que foram cá adotados”.
Mónica Silva, protetora da causa animal que já resgatou muitos animais em risco dos Açores, encontrando-lhes adotantes no continente, tem números mais desafiadores. “Eu felizmente tenho uma taxa de devoluções muito baixa, mas esforço-me muito – e principalmente crio algumas inimizades”. “As pessoas chateiam-se quando lhes recusamos um animal, por mais que lhes tentemos explicar que é porque o animal não se adequa ou porque não tem condições. São vários motivos e as pessoas levam a mal”, lamenta.
A protetora, que vive da zona de Lisboa, não tem dúvidas: “pelo menos um terço dos animais adotados são devolvidos — talvez até mais”.
Os motivos mais comuns são o nascimento de crianças, mudança de habitação, emigração e divórcio, aponta Mónica Silva. “Enquanto as mentalidades e as leis não mudarem, só tenho visto isto piorar. Há cerca de 20 anos, os cães que havia para ajudar eram de caçadores e gipsies. Com a ‘evolução’, tornou-se moda ter animais domésticos, o que fez com que o seu número crescesse drasticamente e tudo piorasse bastante”. “As pessoas não têm humildade para aprender, não querem responsabilidade e muito menos despesas. E depois cada um acha que tem a sua razão e faz o que lhe apetece com os animais — deixam que procriem, que andem na rua, etc.” “O número de animais é grande, daí as o número de devoluções também o ser”.
Percorra a galeria para conhecer alguns destes animais a quem a “sorte” faltou e que aguardam por uma família para sempre.