Família

A “louca” da Amadora que toma conta de animais há 70 anos e não quer desistir

A presidente da AMIAMA cuida de 60 cães no abrigo e ainda vai todos os dias, há 40 anos, dar comida a uma colónia de gatos.
Reforma? Nem pensar.

É Caramelo quem nos recebe, assim que chegamos à Amiama — Associação dos Amigos dos Animais e do Ambiente da Amadora, a caminho dos 30 anos. Olhar pachorrento, pelagem branca, cheira-nos e encosta a cabeça. Somos amigos, percebe. É natural ter sido Caramelo a receber-nos no passado domingo, 9 de março: afinal, ele é o rei da Amiama, a única associação que luta pela dignidade e pelo bem-estar dos cães abandonados daquele concelho da grande Lisboa.

Caramelo tem 18 anos e está no abrigo da Amadora há 17. Nunca conheceu outra família. “Foi deixado aqui à porta, enrolado num lençol, cheio de moscas e formigas. Estava morto, praticamente. Até fazia impressão”, conta Mariana Pais, 72 anos, reformada, e uma das fundadoras da associação a que preside. O pobre cão “esteve seis meses internado na Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, na altura, foram seis mil e tal euros”.

“Ele é um doce, o meu Caramelozito”, diz Mariana, enquanto lhe afaga o dorso. “Agora está a fazer acupuntura, porque tem um padrinho que o leva às sessões. Já está doentinho, coitado. Tem várias metástases. Quando os cães chegam as estas idades, os tumores são os grandes problemas”, lamenta.

Na Amiama, porém, a tradição é que os cães morram “velhinhos”. “Tive uma cadela que veio do Bairro 6 de Maio, que estava uma miséria, e que tinha seis anos quando veio para mim. Esteve comigo até aos 23 anos”, recorda.

Do mesmo bairro, nascido nos 70 do século XX e desmantelado em 2021 pela Câmara da Amadora, veio Snoopy, hoje com “cerca de 15 anos”, o segundo na linha de sucessão. “Também é meiguinho, mas há pessoas de quem ele não gosta muito. Deve lembrar-se do que passou por lá”, diz a cuidadora, que recorda Lucas e Raposinho, que também tinham 17 anos e que morreram no início deste ano.

“Aqui os animais são tratados com muito amor”

Com cerca de 60 cães nas suas instalações, a Amiama “existe há praticamente 30 anos”. “Digo praticamente porque, enquanto associação oficial, foi fundada em 1998, quando se fez a escritura, mas antes já andávamos a trabalhar com a Câmara em busca de um terreno, à procura de um nome e a ajudar animais”.

A associação está instalada junto à Estrada dos Comandos, perto do Hospital Fernando da Fonseca, ao lado do CROAMA — Centro de Recolha Oficial de Animais do Município da Amadora, as novas designações para os antigos “canis municipais”, num terreno cedido pela autarquia (“mas que recebeu muitas melhorias da nossa parte”), que isentou ainda a Amiama do pagamento de água e eletricidade, “porque elas já tinham de ir para o centro de recolha”. No mesmo recinto ainda funciona uma escola de treino, Os Cãogurus.

“Aqui os cães são tratados com muito amor, e têm espaço para se abrigarem”, revela à NiA a presidente, que aproveita a oportunidade para pedir mais ajudas. “A Amiama não tem grandes dívidas, porque eu faço uma gestão muito rigorosa e equilibrada, mas era bom que a Câmara nos pudesse ceder nem que fossem mil euros por mês, que pelo menos davam para pagar ao único funcionário que temos na associação, porque tudo o resto é voluntário.

“Ainda no outro dia, encontrei-me com o presidente da Câmara no supermercado e conversámos um pouco e eu falei-lhe disto. Porque a Amiama merece. Nós recebemos constantemente cães do canil municipal, porque eles não têm capacidade para os ter lá. Temos de os limpar, temos de os alimentar, temos de os levar ao médico. E isso custa dinheiro”, exemplifica a presidente-voluntária, que passa todas as tardes na associação. “Como vê, hoje é domingo e estamos aqui”, nota.

Com um abrigo para os cães e uma enfermaria, a Amiama conta com “a colaboração de duas médicas” e com “um excelente protocolo com a Universidade Lusófona”. “Têm sido inexcedíveis connosco: não pagamos consultas e os exames são muito mais baratos”, explica.

Mariana — que revela ser este um nome de guerra na causa animal, já que o seu nome real, registado civilmente é Balbina — assume a sua luta pela esterilização dos animais. “Os nossos cães quando entram aqui são todos desparasitados, chipados e esterilizados. É uma obrigatoriedade, porque não queremos contribuir para o aumento da população de animais errantes, um problema que continua a ser muito grave”.

A responsável acredita que hoje “há uma maior sensibilização para a questão dos maus-tratos, mas não chega”. “Ainda na semana passada, fomos buscar um cão deixado ali ao fim da rua, amarrado a uma árvore”, conta.

“Há muitos anos, quando comecei a defender a esterilização dos animais, fui quase crucificada. Houve quem me acusasse de ser uma criminosa que queria adotar medidas contra-natura. O tempo acabou por me dar razão”, nota.

Bobi foi o primeiro cão

A paixão pelos animais começou cedo, em casa dos pais. “A minha mãe adorava cães. O meu pai não adorava, mas tolerava. Ele era oficial da Marinha, portanto andava mais fora do que dentro. Mas a minha mãe adorava e eu herdei dela. Sempre que via um animal na rua, queria levá-lo para casa”, recorda, com um sorriso.

Foi aos quatro, cinco anos que teve o seu primeiro cão. “Era o Bobi, já não era bebé quando lá chegou a casa e ainda esteve por lá cerca de dez anos”, puxa pela memória. Diz que sempre foi “muito responsável” e que a avó he dizia: “Se tu queres ter um cão, nós também queremos. Por isso, temos de nos ajudar”. E Mariana ajudava como podia, “dando festinhas e beijinhos, e lavando-o à rua”.

Agora, onde mora, na Damaia de Baixo, não tem animais. “O meu marido teve três AVC e ficou um bocado debilitado, e, portanto, não adianta levar cães para casa porque estou aqui permanentemente”, diz a voluntária que, além da Amiama, que fundou há quase 30 anos, visita diariamente uma colónia de gatos nas Portas de Benfica. “Há 40 anos que é assim: vou lá todos os dias, dar-lhes comida. Agora são cerca de 12 ou 14, porque começaram a ser esterilizados, lá está, mas já foram dezenas.”

Cansada? “Às vezes, sim”, reconhece. “Já passei dos 70, já merecia ir descansar, mas não consigo deixar os meus meninos. Dizem que sou louca. E se calhar sou mesmo louca. Sou a louca da Amadora, mas é uma loucura saudável”, conclui, soltando uma gargalhada.

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