“O Bob morreu”. Bastaram três palavras para mudar por completo a vida de Laíra Campelo e de Luís Miguel Silva. Estas surgiram 26 dias depois do casal ter colocado os seus dois cães, Bob e Dylan, na escola de treino Elite K9, na Lourinhã. A questão que se terá seguido, feita pelo treinador principal e fundador da escola, Mário Alves, foi ainda mais chocante para a família: “Querem que tratem da cremação?”.
Naquele momento, a médica ficou desesperada e ao lado do marido, dirigiu-se até a escola e hotel canino na manhã de uma terça-feira, 18 de junho. “O Bob já estava inchado e duro”, recorda à PiT Laíra. Pelo estado em que estava, a tutora acredita que o companheiro terá morrido poucas horas depois da última visita do marido à escola, na tarde de segunda-feira, 17.
“Nunca nos deram qualquer explicação”, diz sobre o óbito do Cão de Castro Laboreiro. “Disseram que não estavam à espera desse desfecho. Se eles não estavam, imagine nós”.
Entre os dois cães da família, que nascerem em outubro de 2016 com uma diferença de nove dias, Bob era considerado o mais saudável. Dylan, por sua vez, sofria de uma doença autoimune que segundo os tutores era controlada com medicação.
No dia da morte inexplicável de Bob, tiraram Dylan de imediato da escola, cujo custo total do curso com um período de três meses era de 3.650€ para os dois animais. Já em casa, quando foram dar comida ao canídeo, a tutora recorda-se de ver “sangue a sair do seu cotovelo”. Foi aí que terá decidido analisar o corpo do patudo.
“Comecei a examinar o Dylan e vi que ele tinha vários higromas, que são lesões causadas por estar muito tempo deitado em chão duro”, explica a médica. De imediato, entrou em contacto com um médico veterinário que já acompanhava a dupla de cães e conseguiu uma consulta de emergência para o dia seguinte.
Quando lá chegou, o primeiro passo foi pesar o gigante: 58 quilos. Embora o número pareça elevado, para Laíra foi mais uma vez um momento de pavor. Na última pesagem, feita no mês anterior da dupla ir para a escola, diz que o Castro Laboreiro pesava cerca de 70 quilos.
“Como é que esse cão perdeu dez quilos num mês?”, foi a primeira questão que veio à mente. “A partir daí, a nossa revolta voltou a crescer, começámos a por em causa tudo o que nos foi feito e dito”. Duas semanas mais tarde, Dylan também não resistiu. O cão terá sido vítima de uma infeção causada pela ferida aberta, sendo esta uma consequência da alegada falta de medicação que terá ocorrido durante o período em que esteve na Elite K9.
A família está agora com um processo, já em andamento no Ministério Público, que acusa a Elite K9 de maus-tratos e negligência. Mário Alves, por outro lado, negou todas as acusações no mais recente episódio do programa de investigação da RTP “A prova dos factos”, exibido na passada sexta-feira, 20 de julho.
Como tudo começou
Laíra e Luis ainda viviam em Salvaterra de Magos quando decidiram dar as boas-vindas a Bob e Dylan. O casal tinha uma enorme quinta na vila no Ribatejo quando descobriu a raça portuguesa Castro Laboreiro. A ideia inicial era ter apenas um cão, mas depois decidiram ter dois para fazerem companhia um ao outro.
Quando foram buscar Dylan, Bob acabou por ser oferecido pelo criador porque tinha um pequeno “defeito”: era dentuço. Por não ser considerado um “cão perfeito”, não poderia levar o afixo do criador e, consequentemente, não seria colocado à venda. “Ele disse-nos que, a par disso, o Bob seria um cão espetacular. Pediu-nos para levá-lo e cuidar dele”, recorda à PiT.
Os pequenos gigantes habituaram-se ao espaço da quinta e à medida que foram crescendo, começaram a explorar os arredores. Dylan foi sempre descrito como o mais “preguiçoso e comilão” e Bob como um “espírito livre” e “mais preguiçoso para comer”. “Tínhamos quase que correr com a comida atrás dele”, brinca. “Eles eram inseparáveis”.
Os anos foram passando e a dupla continuou unha com carne. Mas na altura da pandemia, tudo mudou. Os dois anos de confinamento fizeram com que Bob e Dylan perdessem o hábito de estarem com outros animais e quando tudo voltou ao normal, continuaram meigos com pessoas, porém agitados com outros cães.
Nessa altura, devido a um problema de saúde de Luis, o casal decidiu mudar para uma casa menor em Peniche. Enquanto a propriedade estava a ser construída, foi viver para um condomínio onde começou a ser alvo de queixas por parte de um vizinho, e a família foi chamada a atenção por parte da administração.
Por causa do tamanho e da raça que tinham, Bob e Dylan eram vistos como uma ameaça pelas outras famílias com animais. E o facto de não estarem habituados com outros cães tornou a vida do casal ainda mais complicada. Foi nesta época que Laíra e Luis partiram em busca de soluções — chegaram a tentar alguns treinadores da região e proximidades, mas sem sucesso.
“A nossa vida ficou muito limitada, porque não podíamos sair e deixá-los sozinhos em casa, porque se houvesse barulho, tínhamos medo que esses vizinhos chamassem a GNR e que nos obrigassem a colocar os cães num canil”, frisa.
Como última alternativa, descobriram a Elite K9, especializada no treino de cães considerados potencialmente perigosos. Antes de colocarem os dois cães na escola, Luis terá tido uma reunião com o responsável, onde explicou a situação, bem como todas as informações de Bob e Dylan. “Ele deu-nos como única alternativa um treino com regime de internato”, conta-nos.
O treino, que no caso de Bob e Dylan teria uma duração total de 90 dias, funcionaria da seguinte maneira, segundo explica a tutora: durante 30 dias, os cães não podiam ter qualquer contacto com os donos para que o treinador conseguisse “conquistar a confiança” de ambos. Passado este tempo, seria feita uma aula em grupo, com a presença da família, para demonstrar as aprendizagens dos animais. Durante o último mês de treino, os patudos passariam a semana inteira na creche da Elite K9 e o fim de semana no próprio lar.
Apesar do desespero que sentiram quando souberam que não poderiam ver Bob e Dylan durante um mês, Laíra e Luis decidiram aceitar as condições, com esperanças que ao fim deste período, Bob e Dylan voltariam finalmente mais calmos. “Muita gente tem-nos chamado de estúpidos, mas para nós, fez sentido naquela altura”, defende Laíra. “Estávamos a falar com uma pessoa profissionalmente competente”.
Os sinais de alerta
Cerca de 15 dias depois e com o coração apertado, o casal decidiu ir até ao hotel da Elite K9 deixar Katuxa, a outra cadela da família que sentia a falta dos “irmãos”.
“Foi uma visita rápida, o meu marido foi vê-los e eles estavam na mesma box que a Katuxa”, partilha. “Naquele momento de alegria, ele não conseguiu perceber nada, até porque ele não estava à espera, não foi com o objetivo de fiscalizar”, acrescenta.
Nas semanas que se seguiram, as visitas foram poucas e quase sempre no contexto de levarem e apanharem Katuxa, que esteve duas vezes no hotel. Numa delas, Laíra terá percebido que Bob estava menor do que o habitual e Dylan estava a coxear de uma pata traseira. Neste dia, terá sido informada que Dylan tinha sido visto pelo veterinário da escola e que Bob estava a “comer pouco”, mas alimentava-se o suficiente.
Mais uma vez, confiou na palavra do profissional. Durante este tempo, a médica diz que chegou a enviar uma receita de um antinflamatório para tratar da pata de Dylan. Além disso, os responsáveis terão garantido à família que tinham as aptidões necessárias para darem os três comprimidos relacionados à doença autoimune com uma certa frequência ao cão, deixando-a descansada.
A 15 de junho, numa das últimas visitas antes da morte de Bob, o casal terá sido informado por uma treinadora que os cães estavam a fazer apenas um treino (sendo que a escola estava contratada para fazer três treinos) porque Bob “estava fraco” e Dylan continuava a coxear.
Ainda assim, Laíra ficou inquieta e pediu para o marido fazer uma outra visita aos cães dois dias mais tarde, para também levar as pipetas de desparasitação. Caso percebesse que os animais não estavam em condições de continuar na escola, devia trazê-los para casa. “Eles [os treinadores] fizeram uma demonstração de treino curta ao meu marido e disseram que no dia anterior o Bob tinha comido tudo”, partilha.
Luis percebeu que as aprendizagens estavam a correr bem e não terá visto qualquer alteração nos animais. Ambos pareciam aparentemente bem e Dylan já não parecia coxear. Como não se apercebeu de qualquer problema grave, decidiu deixá-los. No fim daquela mesma semana, a família seria convidada para o treino em grupo e quando o tutor voltou para casa, estava descansado porque em poucos dias voltaria a estar com os cães. Na manhã seguinte, recebeu a notícia sobre a morte de Bob.
Bob não foi o único a morrer nas instalações da escola
Desde que o caso se tornou viral nas redes sociais, outras denúncias contra a escola vieram à tona. É o caso de Spike, um Pitbull que morreu asfixiado após supostamente ter atacado um cliente da Elite K9. Em declarações à RTP, Mário Alves contou que o cão mordeu os dois braços da vítima e como “única alternativa”, asfixiou-o com o intuito de o fazer desmaiar, mas o patudo acabou por morrer.
“Asfixiei o seu cão, não tive outra alternativa” terá dito a Sandro, tutor do Pitbull, num telefonema após o ocorrido. O dono afirma que nunca teve qualquer prova do ataque e assim como a família de Bob e Dylan, prestou uma queixa contra a escola. O treinador forneceu à RTP um vídeo que supostamente mostra o braço da vítima com marcas de mordidas, mas o canal afirmou que não conseguiu verificar a vericidade da suposta prova.
Outra questão que está a ser debatida é o polémico afastamento dos cães e dos tutores imposto pela escola no regime de internato.
Laurentina Pedroso, Provedora do Animal e médica veterinária, partilha do mesmo pensamento. A profissional foi convidada pela RTP para comentar o caso em sequência da reportagem exibida pelo canal e frisou “não achar normal” o facto dos animais ficarem entre 15 a 30 dias longe dos donos em nome do treino.
“Cientificamente, está provado que os animais aprendem melhor se estiverem emocionalmente estáveis. Não permitir que o animal veja os seus donos durante 15 dias é quebrar o laço de um animal com os seus donos. Portanto, não podem estar estáveis”, disse sobre o caso de Bob e Dylan, acrescentando que a falta de apetite e outros comportamentos incomuns podem estar relacionados com o facto dos cães estarem a sentir-se abandonados pela família.
À PiT, Laíra garante que o processo está “felizmente a andar rápido”. Nas redes sociais, está a alertar outros tutores sobre o ocorrido. “Só quero que a morte deles não seja em vão”, aponta.
A seguir, carregue na galeria para conhecer Bob e Dylan.