Família

Carlos Cordeiro: há 30 anos a ensinar os cães e os donos. E com resultados visíveis

A sua escola de cães, em Oeiras, é, desde o passado dia 8 de junho, a primeira em Portugal a receber certificado ISO 9001.
Lulu a fazer companhia nos treinos.

Carlos Cordeiro é um nome incontornável quando se fala em treino de cães em Portugal. Nascido em Lisboa, em 1970, viveu quase sempre na zona de Oeiras e o seu amor por estes amigos de quatro patas começou no dia em que um pequeno rafeiro o seguiu desde a escola até casa. “Adotei-o. Era o Bobi. Seguia-me para todo o lado, era o meu melhor amigo”, conta à PiT.

“À época, não era muito habitual comprar comida para os cães, por isso o Bobi comia os restos, que não eram muitos — éramos seis pessoas lá em casa, quatro delas crianças, e não éramos ricos — e eu acabava por deixar de comer para lhe dar. Quando a minha mãe percebia, levava uma valente sova, mas não me importava. Aquele cão era o meu melhor amigo e mostrou-me a dedicação, a lealdade e a inteligência dos cães”, diz, emocionado.

Desde então, o caminho percorrido junto destes animais é já longo e a sua experiência e fiabilidade dos seus métodos falam por si: a Carlos Cordeiro — Escola de Cães é desde dia 8 de junho a primeira escola portuguesa de educação e treino canino a obter a certificação da qualidade do seu método de trabalho pela norma ISO 9001.

Depois do Bobi, vieram os cães com os quais Carlos Cordeiro fez o curso de treinador e tratador de cães militares na Força Aérea — e ao longo da vida foi tendo outros animais, “cada um especial à sua maneira”.

“O que posso dizer, sem sombra de dúvida, é que os cães têm uma capacidade única de nos entender, de comunicar connosco e de se adaptarem a nós. Como disse alguém, os cães têm a capacidade de gostar sempre de nós — mesmo quando nós próprios não gostamos”, sublinha.

Por isso mesmo, tem dedicado a sua vida ao treino de obediência — no domicílio e em matilha —, treino de socialização, prevenção e reabilitação perante comportamentos desajustados. Porque com o método certo, nada está perdido.

A certificação agora obtida foi “uma ideia, uma aposta e um risco” que decidiu correr, conta. “Em Portugal não existe a profissão de treinador de cães. Mas existem vários treinadores e escolas, com métodos de trabalho muito diferentes. Que formação têm essas pessoas? Não sabemos”, aponta.

“Infelizmente, em muitos casos, o que definem como treino implica a utilização de métodos violentos para o animal e de meios de contenção, como coleiras de choque. Não concordo com isto. Nunca bati num animal, não seria capaz de o fazer. O meu método de treino baseia-se na criação de uma figura de autoridade, não na violência. Talvez por isso, quando reencontro animais que foram meus ‘alunos’, estes correm para mim e fazem-me uma festa — o que é muito bom, claro”, relata Carlos.

Mas o treinador considera que esta realidade tem de mudar “para bem de todos, sobretudo dos animais”. “É preciso criar a profissão e regulá-la. É necessário que quem a exerça tenha formação e obedeça a métodos de trabalho que não só consigam produzir resultados consistentes, mas que o façam sem recorrer a meios menos ortodoxos que não dignificam esta atividade e acabam por causar problemas maiores”, defende.

Os problemas mais comuns

Nos últimos dois anos, essencialmente devido à pandemia, aumentaram os problemas relacionados com a mudança de rotinas dos donos, como comportamentos relacionados com ansiedade de separação — ladrar, fazer estragos em casa, necessidades fora do sítio, etc. —, explica Carlos Cordeiro.

Além destes casos, “a maioria das situações tem a ver com problemas de socialização, ou porque os animais não foram simplesmente socializados ou porque esta foi mal feita”.

Muito comuns são também os problemas comportamentais relacionados com a ausência da exposição a estímulos, muitas vezes observados em animais que vieram de associações — e Carlos salienta que a pandemia também fez aumentar o número de adoções. “Estes animais precisam de ser expostos ao maior número de estímulos possível, especialmente se viverem em meio urbano”.

No entanto, a situação mais habitual é a falta de segurança dos donos, que acaba por prejudicar os animais. “Claro que as pessoas não agem com má intenção, mas medo, insegurança, falta de confiança ou excesso de mimo podem causar ou agravar comportamentos desajustados — que podem ser corrigidos, mas que só o serão se o dono quiser ser parte da solução”.

Não basta trabalhar o cão. Os donos precisam de bases

Os donos são responsáveis pela segurança e pelo bem-estar dos animais. Daí que Carlos Cordeiro defenda que o treino se deve centrar primeiro no dono e só depois no cão.

“O treinador tem a função de capacitar os donos para prever, corrigir e controlar o comportamento do seu animal, mas apenas está presente durante um período de tempo limitado — ao passo que o dono estará sempre lá. É a este que o animal terá de responder e obedecer sempre. Por isso, a participação dos donos nas aulas não é opcional ou desejável. É imprescindível”, alerta.

Um caso marcante… com final feliz

Ao longo de perto de 30 anos de experiência nesta área, Carlos Cordeiro teve já muitos casos marcantes. E houve um que o tocou em particular “pela gravidade da situação e também porque traz para a discussão a questão dos cães perigosos”.

“Trata-se de um cão de grande porte, mas não de raça classificada como perigosa, que atacou as donas com bastante gravidade. Uma delas foi ferida no rosto e teve de ser operada. Mas nenhuma das duas queria desistir do seu cão e recorreram a um treinador que, ao fim de algumas horas, lhes disse que a melhor solução seria mandar abater o animal porque este era irrecuperável”, recorda Carlos.

Felizmente, não foi a solução procurada por esta família. “Entraram em contacto comigo e conseguimos recuperar o animal. E nem foi preciso muito tempo, apenas o suficiente para que as donas percebessem o que tinham de fazer e que atitude teriam de assumir perante o animal”, explica.

“A verdade é que já passaram mais de 10 anos e o cão continua a viver com as donas, que se mantêm em contacto comigo e me vão dando notícias. Não houve mais problemas, elas estão muito satisfeitas com o seu cão e são sempre de uma simpatia e gratidão que me deixam desconcertado, confesso, porque o trabalho ao longo deste tempo tem sido delas. Só devido ao empenho e vontade que mostraram é que conseguimos recuperar o animal”.

De que se fala quando se fala de estímulos

Os estímulos, no local certo, são cruciais. Se os treinos forem dados dentro de uma escola, os estímulos que o cão recebe depois quando passeia na rua são totalmente diferentes, pelo que não se pode esperar a mesma reação. É como aprender a conduzir no campo, numa estrada a perder de vista, e depois ter de atravessar uma cidade cheia de rotundas e trânsito — a preparação é diferente.

“Numa escola, o animal está num ambiente controlado, que desconhece, e ao qual não irá regressar após o treino. É normal que se sinta assustado e não demonstre a maior parte dos comportamentos que tem em casa, por exemplo. Mais ainda se o dono não estiver presente durante as aulas”, explica Carlos Cordeiro.

Daí que a sua metodologia seja outra. “O método de treino que desenvolvi é composto por aulas individuais em casa e nos locais onde a maioria dos problemas ocorre — sempre com a presença dos donos e, idealmente, de todas as pessoas que coabitem com o animal”. “É fundamental observar o relacionamento entre pessoas e animais para poder identificar problemas e corrigi-los”, acrescenta.

As aulas individuais “podem (e devem) ser complementadas com aulas em matilha, que permitem trabalhar a obediência e a socialização do animal, ajudá-lo a perder o medo de outros cães ou pessoas, a não ser agressivo ou reativo”. Os donos também estão presentes nestas aulas, que começam ou terminam sempre com um passeio mais prolongado, o que ajuda a fortalecer a relação entre dono e animal.

A parceria com um santuário

Carlos Cordeiro — que já atendeu a pedidos de ajuda por Portugal inteiro e até em países como a Suíça, Espanha ou Itália — não se fica por aqui.  Há um projeto que muito o anima e com o qual tem ajudado outros animais: os que ainda não têm família.

“Tenho uma parceria com o Santuário Animais sem Fronteiras, que pretende acabar com a devolução de animais e facilitar a adaptação dos que estão para adoção, dando-lhes treino de obediência e, sobretudo, expondo-os a estímulos através de passeios feitos na cidade, com a ajuda de voluntários”, conta.

Sempre que possível, estes animais irão passar algum tempo a casa dos voluntários para se adaptarem à vida em família. “O nosso sonho, que queremos transformar em objetivo concretizável, é aumentar as adoções e fazer com que todos os animais encontrem donos que os recebam sem receios ou dúvidas. É para isso que trabalhamos”, remata. E que belo trabalho.

Percorra a galeria para conhecer melhor o treinador Carlos Cordeiro e o trabalho que desenvolve a mudar, para melhor, a vida de muitos cães e dos seus donos.

ÚLTIMOS ARTIGOS DA PiT