Lira tinha três pernas. Não só parecia uma guerreira, como o era. A cadela foi a prova de como a liberdade pode transformar-se em negligência. Os seus donos deixavam-na solta e andava à vontade pelas redondezas da sua casa. Até que, certo dia, foi atropelada. Levaram-na ao veterinário e, mal ouviram a palavra “amputação”, pensaram imediatamente no que era ter um cão só com três patas.
Decidiram levar a pobre cadelinha para casa e deixá-la morrer sem a operação. Ao ouvir isto, a rececionista recusou-se prontamente a que isso acontecesse e optou por ser ela a levá-la para casa. Acabou por lhe ser amputada uma perna e Lira foi posta para adoção.
“Mas alguém quer um cão com três patas?”, esta foi a primeira história sofredora com que Carlos Filipe, 41 anos, se cruzou. Sabia ele que muitas mais viriam, e ainda mais graves. A resposta à pergunta que lhe fizeram foi sempre sim, mas tinha que haver uma forma de retratar a bonança em que os animais estavam, depois da tempestade que viveram.
Ingressou na carreira de fotografia em 2009, mas não foram os animais os primeiros a estar à frente da câmara. Começou por captar pessoas e as suas histórias, fosse de abusos, fosse de violência doméstica, mas num ponto de vista mais sombrio. Foi então que decidiu fazer uma pausa: precisava de encontrar cor e inspiração.
O cidadão algarvio sabia que não era em Portugal que as ia encontrar. Então, juntou-se a uma companhia aérea e trabalhou como comissário de bordo até aterrar num local que lhe enchesse as medidas. Apaixonou-se por Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, viveu os perigos de Caracas, na Venezuela, e descobriu o que procurava em Sidney, na Austrália.
“Eles preservam muito a natureza e não se podem matar animais, mesmos os pequenos lagartos que encontramos no quarto. Esse contacto com a natureza trouxe-me a inspiração. Abandonei a escuridão e levei as cores vivas de volta a Portugal”, conta à PiT o fotógrafo. E sabia lá que seria essa a alma do negócio.

A primeira cobaia dessa nova forma de captar a essência dos personagens foi o seu cão Boris, que tem agora cinco anos. E até o seu companheiro tinha vivido uma história difícil antes de chegar aos seus braços. “Foi encontrado a vaguear na rua com uma corda ao pescoço. A minha patroa sabia que eu queria um cão e por isso levou-o para o escritório”.
A mantinha onde Boris estava enrolado, que ainda hoje Carlos guarda com carinho, escondia, na verdade, muito do seu estado debilitado. “Quando o pousaram no chão, ele começou a coxear”, e a ignorância do fotógrafo em saber cuidar de cães, fê-lo pensar exatamente da mesma forma da família da cadela de três patas que conhecera: “Ainda por cima é coxo? Meu Deus, como vou ficar com ele?”.
Mas levou-o para casa, e, embora lhe tivesse destruído os rodapés, óculos e sapatos, tratou-o com uma grande estima: “Ele é um cão com muitos problemas. Se eu não o tivesse adotado, ele teria morrido”.
Começou a fotografá-lo no estúdio que montou em casa, apenas pela piada. Mas a verdade é que a piada causou um grande sucesso nas redes sociais, e Carlos decidiu fazer algo mais com toda a cor e vivacidade que tinha conquistado os seus seguidores.
“Todos para mim são Boris”
Não é preciso muito para fazer Carlos deitar uma lágrima do olho. O fotógrafo assume a sua emoção e a comoção quando ouve histórias trágicas. Mas houve algo que não só não fez chorar o algarvio, como lhe causou alguma angústia: “Recebi um calendário solidário, que tinha várias fotografias de animais que tinham tido uma vida difícil. E dei por mim a pensar: ‘Deus me livre de adotar um animal destes'”, admite à PiT.
Nada se devia à falta de um olho, à peculiaridade das patas, ou à cicatrizes de vida que pudessem trazer: “Os animais estavam tristes e as fotografias não os favoreciam”. E Carlos soube nesse momento que tinha que os retratar da mesma forma que fazia com o seu cão: “Todos para mim são Boris”.
Começou a trabalhar com várias associações, abrigos e canis. Tanto fotografava animais e apelava à sua adoção, como ia a feiras angariar dinheiro. A primeira foi em 2018, em que fez 600€. Passados quatro anos, já fez mais de 5.000€.
Arranjou também um nome para os animais diferentes que captava, que fugiam à norma, mas que isso apenas os tornava mais especiais: “Amigos Imperfeitos”. E foi isso que intitulou nas mais de mil palavras que uma imagem pode valer, através do livro que lançou, em 2019, e da série de vídeos que fez para o Youtube.
Carlos passou a ouvir e a redigir as histórias dos animais. Começou a contá-las além das cicatrizes que exibia e do sofrimento que ausentava. E sim, chorava. E muito.

Fofinha vivia numa casa com cinco cães de grande porte. Do seu rosto, faltavam os dois olhos, e o seu próprio nariz contava algum do seu sofrimento. “Os cães atacavam-na porque ela era pequenina. Tinha ninhadas, que eram mortas à nascença e ela passava a vida na rua, a dormir no alcatrão”, foi com a cadela enrolada numa manta que João Ferreira, protetor de animais da Animal Rescue Algarve (ARA) e que ajudou a resgatar a cadela quando estava noutra associação algarvia, contou o seu testemunho num dos vídeos.
Pelo discurso do seu grande amigo que Carlos emocionou-se com a história de Fofinha, uma cadela que até tinha sido abusada sexualmente. Sem ter a menor ideia de que a maior tristeza vinha momentos depois: “Quando estávamos a gravar, só soube a meio que ela ia ser posta a dormir. Estava a vê-la dentro do elevador, sabendo que, quando a porta se fechasse, era a última vez que a ia ver. Porque amar também é deixar partir”.
Fofinha partiu, mas a sua história ficou. Para inspirar outros e como fonte de lágrimas para Carlos, que se recusa a ver os vídeos depois de os publicar.
Um flash que pode mudar vidas
Carlos lida bem com a sua emoção. Aliás, equilibra-a com o humor negro que tanto lhe é característico. E brinca muito com o seu grande amigo, tanto de profissão como de vida, João Ferreira, que tem oito animais, uns sem olhos, outros sem patas, que são motivo de gozo: “Digo-lhe: ‘Oh João, dizes que tens uma matilha, mas, se formos contar, tens para aí dois cães e meio'”. A este comentário, João ri e exclama: “Qualquer dia meto-te em tribunal”.
Sim, o fotógrafo brinca, mas também porque esse é o mote com que vivem todos os animais que já passaram por muito: “Enquanto que nós nos queixamos de barriga cheia, eles, que têm problemas tão grandes, vivem felizes e bem-dispostos”, sublinha à PiT.
Carlos sabe bem da responsabilidade que é transportar isso para a fotografia, pois esta pode mesmo mudar vidas. E a verdade é que o faz: “Durante três anos, sempre que me chamavam para ir trabalhar num canil, pois há animais que não conseguem sair de lá, eu via sempre o mesmo cão, o Charlie Brown. Não percebia o porquê de não o adotarem, pois era lindo”.
Até que um dia o maluco Charlie Brown saiu de lá. Não porque tivesse sido “posto a dormir”, como o algarvio descreve, mas porque tinha arranjado uma família que o aceitava tal como ele era.

Porque fotografar cães, gatos, cabras, javalis, qualquer que seja o animal com história tem muito mais que se diga além de apontar a câmara e disparar um flash. E, aliás, mesmo quando a máquina está desligada, é impossível desligar da realidade: “Como quero que as fotografias cheguem o mais longe possível, gosto de saber como estão depois de elas resultarem em adoção. Se são bem tratados, se estão bem de saúde. Ou até mesmo se já partiram”.
Mas não desligar resulta para Carlos, e são os próprios amigos a dizê-lo: “Nunca te vi tão feliz. Eras fútil e agora queres ajudar e andar por todo o lado a fotografar animais”.
Carregue na galeria para ver alguns dos rostos com história que Carlos Filipe capta na sua máquina e no seu coração.