Família

João Ferreira — o protetor do Algarve que aos oito anos criou um animal a biberão

Onde houver animais é onde este cuidador é feliz. Vive com oito. E os (im)perfeitos dão grandes lições de vida.
Foto de família.

A causa animal tem vindo, nos últimos anos, a conquistar cada vez mais pessoas no nosso país. Há ainda muito caminho a percorrer no que ao bem-estar animal diz respeito, mas cada novo cuidador, protetor e voluntário desta causa é mais um reforço de peso numa cultura que ainda se esquece, muitas vezes, de dar voz a quem não a tem.

A PiT inicia agora uma série de histórias de mulheres e homens inspiradores por este Portugal fora e que, com o seu exemplo de resiliência, abnegação e coragem vão conseguindo ajudar a virar a página de vidas desfeitas – as vidas dos animais que encontram no caminho e a quem é dada uma oportunidade de recuperarem e deixarem para trás as sombras do passado.

Para falarmos da causa animal, temos necessariamente de falar de amor. E amor é coisa que não falta a João Ferreira, um protetor nascido e criado em Portimão, mas com raízes em Viseu.

João Ferreira tem 27 anos. Quando finalizou o 12.º ano já estava no mercado de trabalho, conta à PiT. Nessa altura, já contava com muitos animais na sua vida. “Comecei a trabalhar jovem para poder sustentar os animais que tinha e, pela mesma razão, não quis por opção pessoal ir para a universidade. Por isso, já estava a trabalhar enquanto estudava e o trabalho sempre me agradou mais que os estudos”, sublinha.

Educado por uma família unida e com bons princípios, João é grato pelo que a vida lhe tem dado. “Sou agradecido pelas pessoas que me rodeiam no seio familiar e amigos”, diz.

O seu amor pelos animais “veio de nascença, sem qualquer explicação nem influência”, recorda. “Embora tenha uma família muito unida, ninguém tem esta paixão pelos animais. Em criança todos os brinquedos, livros, filmes e jogos que queria estavam diretamente relacionados com animais e o gosto cresceu sempre mais e mais – ao ponto de, antes da adolescência, já ter bem definido que queria passar a minha vida rodeado deles”.

E assim tem sido. “Criei o meu primeiro animal a biberão tinha oito anos de idade. Desde aí, a paixão ficou ainda mais intensa. Aos dez anos já estava a voluntariar em campanhas de adoções, recolhas de alimentos e aos 12/13 anos já estava a ajudar em capturas de animais para esterilização e alguns resgates”, conta.

Ser FAT é muito recompensador

Foi também nessa altura que se envolveu mais com uma associação em Portimão, onde desempenhou várias funções. “A melhor de todas foi ser FAT (família de acolhimento temporário), o que me permitiu ao longo dos anos receber mais de cinco centenas de cães e gatos que ficaram comigo até serem adotados”.

Em 2019, João fez uma enorme mudança na sua vida. “Fui viver e trabalhar para um abrigo de animais privado, situado em Loulé, onde permaneço até hoje”, explica. Chama-se ARA – Animal Rescue Algarve e abriga cerca de 100 cães e 50 gatos. “Tem sido uma experiência fantástica poder colaborar com este abrigo que atualmente é o meu maior orgulho pelo trabalho que faz”.

A vida de João Ferreira tem sido, assim, percorrida de mãos dadas com os animais que encontra a precisarem de ajuda. E há muitas histórias para contar.

Liberdade é isto.

Há oito anos tive um resgate muito especial e que mudou totalmente a minha vida: uma cadela que se chamava Fofinha, que tinha sido largada numa sucata, agredida por outros cães e violada – sim, violada – por alguns habitantes com problemas de álcool”, recorda. “Foi resgatada com tumores, extremamente anémica, com leishmaniose, e ficou comigo em FAT até ser adotada por uma grande amiga, acabando por estar sempre presente na minha vida”.

A Fofinha foi submetida a várias cirurgias e acabou por remover ambos os olhos. “Mesmo invisual, ela estava sempre feliz e foi uma enorme lição para todos nós que a acompanhámos durante cinco anos, quando a esperança de vida que lhe tinha sido atribuída seria de cerca de seis meses. Com ela abri os horizontes e ganhei uma paixão muito grande por animais com incapacidades físicas”, salienta o protetor algarvio.

Se acolher e adotar todos os que precisam já é difícil em Portugal, quando há incapacidades físicas – que exigem maior atenção, cuidados e tempo – o cenário piora. Mas não com João por perto.

A “matilha”, um a um

“Atualmente tenho oito animais (não contando com os que estão em FAT), que são como filhos para mim”, conta João Ferreira. Passemos às apresentações, começando pelos cães.

“A Yara, a chefe da minha matilha que há dez anos encontrei recém-nascida dentro de dois sacos fechados num contentor do lixo, ainda com restos de placenta e cordão umbilical, criei-a a biberão e ao longo desta década de cãopanheirismo tem sido o meu maior suporte”, diz o cuidador de 27 anos.

Já a Chloe, também com cerca de dez anos, foi adotada por João há cinco anos. Isto “após ter sido resgatada de um caçador que a mantinha – a ela e mais outros 50 cães –numa suinicultura quase sem luz, onde os animais dormiam em cima dos próprios dejetos”, relata. “A Chloe tinha pavor da própria sombra e nunca tinha tido contacto humano. Os primeiros dois anos foram difíceis e de muita adaptação, mas hoje em dia é a minha maior sombra, a cadela mais energética e exploradora, e a que cuida de todos os membros da matilha com maior carinho”.

Quanto ao Spirit, tem cerca de sete anos e “viveu muito tempo na rua, com uma corda ao pescoço, cicatrizes por todo o corpo e uma pata partida”. “Tinha muito medo de humanos e quando o resgatei estava extremamente assustado, tinha febre da carraça e através de raio-x foram detetados chumbos numa perna de tiros que levou”, recorda. “Iria ficar comigo até encontrar uma família, mas no dia em que amputou a pata eu decidi adotar, visto que ele já fazia parte da família desde o primeiro segundo. Hoje em dia, dois anos depois, não tem medo de nada nem ninguém e com apenas três patas é o mais rápido de todos”.

O Alex tem quase três anos e veio logo de seguida. “Pela primeira vez adotei um animal que não tinha sido um resgate meu. Foi abandonado aos dois meses de idade, totalmente surdo e sem os dois olhos”, diz João, que explica como é que este patudo entrou na sua vida.

“Foi resgatado por uma associação de Espanha e na verdade estava ali o cão dos meus sonhos, mas decidi aguardar. Aos oito meses de idade ele ainda não tinha família e decidi então que a família dele seria a minha”. E assim foi. “Fiz todo o processo de adoção e desde há dois anos que tenho aquele que é o cão mais feliz do mundo. E mesmo sendo cego e surdo, o Alex é o mais corajoso, destemido e simpático. É louco por água, por passeios e ama todas as pessoas e animais”.

Já a Allegra não estava nos planos. De todo, sublinha João. “Foi atropelada aos dois meses de idade, ficou paraplégica e incontinente. A família não tinha posses e deixou-a fechada num espaço pequeno durante um ano, afetando a coluna dela – que ficou torta com a ausência de tratamentos”, conta.

Quando a Allegra chegou à ARA já tinha passado dois anos numa outra associação, onde lhe foram amputadas as patas traseiras e a cauda. “Quando chegou, foi amor à primeira vista e foi mútuo. Fiquei com ela cinco meses a tentar encontrar uma família, mas quando percebi ela já me tinha adotado e já era membro desta nossa família.”

João diz que a Allegra “é, sem dúvida, uma inspiração”. “Com apenas duas patas, tem mais energia que todos os outros. É a rebelde da matilha, a mais curiosa e confiante, adora brincar e na cadeira de rodas ninguém a consegue parar”, remata.

Dois gatos e um bode completam a família

A “matilha” de João é também composta por dois gatos, ambos com seis anos, resgatados na mesma altura. “Ambos vieram para minha casa para recuperar do estado em que se encontravam e ficaram os dois. São como irmãos e não se largam”.

Mas não poderiam ser mais diferentes. “O Bruno é um sobrevivente da panleucopenia e tem apenas um olho derivado à coriza que teve em bebé. É um cão em corpo de gato, adora todas as pessoas, passeia de trela e já viajou pelo país inteiro comigo e com os cães numa viagem de carro que foi uma aventura para todos. Dorme todas as noites junto de mim”.

Por sua vez, o Nilton “é uma pantera negra, literalmente”. “Gosta muito dos outros animais, mas não é nada sociável com pessoas, nem mesmo comigo. Era um gato silvestre que nunca ficou meigo e que nunca seria adotado e então foi ficando até eu decidir que ficaria para sempre”.

O problemas de saúde de Nilton são minorados com a ajuda de um tutor atento como João. “Sofre de gengivite-estomatite, o que tem sido muito doloroso, pois faz injeções regularmente. Tem que ser sedado para alguns tratamentos. Com ele aprendi que se pode amar um animal mesmo sem contacto físico e/ou interação”, sublinha.

5 de junho de 2022. Welcome to the family, Alive.

Mas há mais. Também tem quatro patas, mas não é cão nem gato. João explica: “Por último achei que a matilha não estaria completa sem um bode. Foi então que há alguns meses o Alive veio juntar-se a nós, após ter sido resgatado pela associação Jardim da Aryel”.

“Para mim não existe diferença entre ele e os meus outros animais. O Alive – Ali para os amigos – é um ser fantástico, dotado de uma inteligência tal que se os outros humanos convivessem com ele o mundo tornava-se vegetariano”, afiança. “A convivência dele com os cães e os gatos é excelente e com as pessoas é ele quem manda!”, esclarece.

A melhor viagem foi com os cães e o gato Bruno

Além dos animais, João é um amante da natureza e das viagens. Há nove anos fez uma viagem de 34 dias apenas com os seus cães e o gato Bruno e diz ter sido a melhor viagem da sua vida.

“Percorremos Portugal de norte a sul. Desde então que viajo bastante e as melhores viagens são as que faço com eles”, conta. Mas a logística não é fácil: “infelizmente, Portugal está muito aquém do que considero ser pet friendly – e quando se viaja com a quantidade de animais com que eu viajo, as hipóteses são reduzidas, pelo que opto por ficar em parques de campismo ou em casas de amigos”.

Quando não há soluções, dormem todos no carro. “O importante é que haja diversão e partilha, e confesso que se torna mais fácil do que é imaginável, tendo em conta que todos os meus cães estão extremamente habituados a ir comigo para todo o lado, diariamente, e sabem como se comportar em cada situação”. O facto de todos se relacionarem muito bem entre eles é excelente – “e serem sociáveis com todos os animais e pessoas que encontramos é uma enorme ajuda”, aponta.

Sobre o conselho que daria às pessoas em geral, sobre a forma como devem olhar e tratar um animal, João é perentório: “os animais devem ser tratados como seres sencientes que são”. “A partir do momento que possuem sentimentos, dor, sede e fome, frio e calor e até sentimentos que temos como humanos – saudade, tristeza, etc. –, têm que ser tratados como merecem”.

“Obviamente que, sendo eu um amante de animais, o que mais queria era que todos os membros da sociedade os vissem como membros da família. Nenhum animal merece viver acorrentado, fechado numa varanda, privado de cuidados básicos e muito menos violentados. Um animal deve ser olhado com respeito, tratado com carinho. E, como humanos que somos, e ditos racionais, é nossa responsabilidade zelar por eles”, diz. “Gostar não é uma obrigatoriedade, respeitar sim”.

A dor da perda na primeira pessoa

João sempre gostou de escrever sobre os animais que passam pela sua vida. E as suas palavras não deixam ninguém indiferente. À PiT, salienta que o que escreve sobre os seus animais “não é apenas um gosto pessoal, mas também uma escapatória aos dias caóticos que se tem quando se vive com uma matilha, um trabalho e um quotidiano rodeado de pessoas”.

Recentemente, a Finha partiu e João escreveu sobre a dor que sentia. Essa dor chegou a todos e exemplo disso foram os perto de 900 comentários na publicação no Facebook. “Perder um animal é a maior dor para qualquer pessoa que os veja da mesma forma que eu. A partida da Finha foi a maior dor que senti na vida, maior que qualquer dor física”, conta.

A Finha acompanhou grande parte da vida de João.

Foi muito duro. “Perder um membro da família que me acompanhava há mais de 16 anos foi como perder uma parte de mim que foi com ela”, diz. “Esse é o único lado mau dos cães, viverem tão pouco. Ainda assim, vivem mais do que o suficiente para nos ensinar a importância das coisas básicas da vida e ela foi a melhor professora que tive. Estará comigo para sempre, onde quer que esteja”.

“Só fico onde estou feliz”

E onde se imagina daqui a dez anos? João diz não conseguir prever. Mas de uma coisa tem a certeza: “só fico onde estou feliz e hoje estou mais feliz que nunca no lugar onde estou”.

“Se assim continuar, aqui estarei dentro de dez anos. Caso contrário, que seja para melhor e que eu esteja a viajar pelo mundo fora com os meus animais ou quem sabe num projeto que esteja ligado a animais ‘im’perfeitos”.

E mudaria algo no percurso feito até agora? “Não me recordo de muito que mudaria. Talvez tivesse aproveitado mais a juventude, mas estamos sempre a tempo e posso fazê-lo agora. Estou feliz com as decisões que tomei e as menos acertadas são sempre uma aprendizagem para o futuro”.

Para João, tudo o que vivenciamos é importante. E é pela via da aprendizagem, lado a lado com patas e pelos, que vai continuar a caminhar. “Sou um daqueles que acha que todos temos que passar por diferentes processos e experiências para sabermos qual o nosso papel no mundo”.

Percorra a galeria para conhecer melhor os animais da vida de João Ferreira.

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