José Luís Peixoto é um reconhecido dramaturgo, narrador, escritor e poeta português. Muitos dos seus livros estão traduzidos em várias línguas e já lhe valeram muitos prémios. É através das palavras, por onde navega com a arte da simplicidade, que vai escrevendo aquilo que vê e sente do mundo, das suas pessoas e também dos animais que passam pela sua vida. E agora declamou, como num poema, as palavras que escreveu há 11 anos em homenagem à sua cadela Puka, que morreu em janeiro de 2019.
“Há cinco anos, perdemos a Puka. Nos comentários, deixo a ligação para um vídeo com palavras e imagens a lembrá-la e a dá-la a conhecer. Gostava muito que o vissem e partilhassem. Adoraria também que partilhassem nos comentários imagens dos vossos amigos de quatro patas. Que a memória da Puka possa ter muitos nomes”, escreveu José Luís Peixoto numa publicação feita no sábado, 13 de janeiro, no Facebook.
O repto do escritor de 49 anos teve eco imediato e o post tem estado a encher-se de comentários com muitos dos seus seguidores a darem a conhecer os seus cães e gatos.
O vídeo foi colocado no YouTube também no sábado e já conta com muitos likes e comentários. É ali que podemos ouvir o escritor a ler, como quem declama, as palavras que dedicou a Puka numa crónica publicada na revista “Visão” a 20 de fevereiro de 2013, e que aqui reproduzimos.
Puka – agora em memória
“Quando morre um cão, há uma tristeza específica. É fina e espeta-se no pensamento. Aleija só de imaginar. Deriva da pena de não termos sido capazes de estar à altura da pureza, da generosidade absoluta.
Está deitada ao meu lado, a ressonar. Acredito que o som dos meus dedos no teclado do computador também a tranquiliza: o ritmo certo/incerto destas palavras: letras-letras-letras espaço letras-letras-letras espaço. Se assim for, se a minha escrita contribuir para a paz do seu sono, está apenas a devolver-lhe aquilo que também recebe deste corpo encostado a mim, a respirar profundamente, como se essa fosse a sua resposta ao tempo.
Quando lhe pouso a mão em cima, deixa-me fazer tudo. Não se incomoda. Essa é a forma que tem de mostrar a sua confiança ilimitada. Não acorda, como se escolhesse não acordar. Oferece o corpo às minhas festas e, se a aperto com um pouco de mais força, deixa escapar um som de prazer preguiçoso, arrastado, nasce-lhe na garganta.
Noutras horas, quando sente um barulho mínimo nas escadas, começa por rosnar e, se o barulho continua, quer ladrar contra a porta fechada. É preciso chamá-la e convencê-la a pensar noutro assunto. Agora, esses episódios parecem histórias inventadas. Neste momento, abrir os olhos e voltar a fechá-los logo a seguir é o máximo de incómodo que aceita. Está tão calma, tem tanto vagar. Às vezes, debaixo das minhas festas, espreguiça-se longamente. Depois, perde a força nos músculos e afunda-se ainda mais no sono.
Eu já estava aqui sentado, a escrever, quando ela chegou muito direita. Caminhou na minha direção sem hesitar, com as patinhas a riscarem um som leve. Numa agilidade súbita, deu um pequeno salto e ficou ao meu lado. Então, encostou-se à minha perna, formámos uma pequena união de calor, e adormeceu.
Foi também assim que chegou à minha vida. Eu não esperava nada, não procurava nada, ela chegou e, sem forçar, conquistou-me inteiro com a sua presença. Quando lhe faço festas na cabeça, os seus olhos descobrem-se entre o pêlo. Há uma certa tristeza nesse olhar antigo, como se carregasse restos de uma mágoa. Compreendo-a e, às vezes, chego a acreditar que também ela me compreende a mim, também ela é capaz de distinguir essa mesma idade no meu olhar, esse silêncio. Encontrámo-nos aqui, mas viemos de lugares distantes.
Durante o dia, passeia sossegada pela casa. Só ela sabe onde vai. Com frequência, escolhe um quadrado de sol no chão e deixa cair as orelhas. Nessas ocasiões, está preparada para qualquer surpresa.
De todas as palavras que existem no mundo, há duas que a enchem de eletricidade: “rua” e “bola”. Rejuvenesce com cada uma delas, enlouquece. Na rua, muito interessada, como se estivesse a tomar conhecimento das últimas notícias, vai sempre cheirar os mesmos cantos. Fingindo não fazer caso, partilhamos o pudor do momento em que baixa as duas patinhas de trás e, depois, se afasta de uma pequena poça de chichi. Com a bola, dá saltos no ar, apoia-se em duas patas, chega a ficar assim alguns segundos, como no circo, e parece cega quando corre para apanhá-la. Vai buscá-la onde for preciso.
Quando eu andava na escola primária, numa visita de estudo ao Jardim Zoológico de Lisboa, admirei-me com o cemitério dos animais de estimação. Estava habituado a cães que mal tinham nome, que eram levados numa saca e enterrados no campo. Durante anos, habituávamo-nos a ver um cão quando passávamos numa certa rua, depois, um dia, deixávamos de vê-lo. Era assim.
Hoje, com esta cadelinha, sinto-me como aquele velho mal-humorado, a queixar-se de tudo, a culpar sempre os outros, mas que se derrete com os netos, lhes permite tudo, e quase parece outra pessoa. Talvez por isso, sou agora capaz de compreender que, quando morre um cão, há uma tristeza específica. É fina e espeta-se no pensamento. Aleija só de imaginar. Deriva da pena de não termos sido capazes de estar à altura da pureza, da generosidade absoluta.
Aqui, o tempo desta sala continua à mesma cadência, letras-letras-letras espaço letras-letras-letras espaço. Às vezes, ela estremece de repente. O arco da respiração perturba-se. Está talvez a sonhar. Aperto-a de encontro a mim. Nada te pode fazer mal, pequenina. Eu protejo-te com a mesma dedicação com que me proteges. Esta companhia que partilhamos é eterna”.
Mira é agora a companheira de quatro patas
Numa entrevista feita em outubro passado ao PiT Stop, o podcast da PiT em que os animais de ilustres personalidades portuguesas são os protagonistas, José Luís Peixoto falou sobre alguns pets que foram passando pela sua vida e sobre como a relação com eles mudou.
O dramaturgo natural de Galveias, uma vila no Alentejo com pouco mais de mil habitantes, cresceu rodeado pelos cães e gatos sem donos – e, além desses, tinha contacto com os seus e os da vizinhança. O amor esteve sempre lá, mas nem sempre foi demonstrado da mesma forma.
“Havia essa ideia de que havia o lugar dos cães e este era muito diferente do das pessoas”, recorda na entrevista. Embora hoje os animais sejam vistos como parte integrante da família e já tenham vários produtos, espaços e leis pensados neles, nem sempre foi assim. Ainda mais em zonas rurais onde eram (e são) criados para o trabalho”, sublinhou. Durante todo o episódio, à conversa com Nuno Azinheira, também discutiu a carreira de cerca de 23 anos e não deixou de mencionar Mira, a atual companheira de quatro patas.
Entre as semelhanças que hoje, por coincidência, continuam a acontecer na vida do poeta, está a gata Vera, que apareceu à porta do seu prédio, em Paço de Arcos, no concelho de Oeiras – distrito de Lisboa. No primeiro andar, vive também o seu primo, que desde o início se afeiçoou pela felina de ninguém. A patuda não foi a primeira a aparecer ali, mas foi uma das únicas que se aproximou dos moradores. E agora é um pouco de todos, como que uma gata comunitária.
José Luís Peixoto contou ainda que, na família mais próxima, quase todos têm cães e Mira está sempre rodeada pela “matilha dispersa”. Quando viaja com a mulher, o escritor deixa a companheira de quatro patas na casa da sobrinha, tutora de Tuco e Ollie. “A Mira sente um parentesco muito próximo com eles”.
Mira ainda conviveu com Farrusco, um cão que o escritor adotou num canil e que morreu no fim de maio de 2020. Numa das últimas fotos que lhe tirou, José Luís Peixoto contou um pouco da sua história: “O Farrusco. Não sabemos que idade tem. Sabemos que esteve 5 anos num canil municipal antes de vir cá para casa (há 3 anos). Sabemos também que já não era novo quando chegou ao canil. Apesar dos muitos problemas que trazia, depois de muitas idas ao veterinário, chegámos a vê-lo correr e saltar. Agora, com esta idade, as pessoas na rua admiram-se porque nunca viram um cão assim, tão desorientado e desengonçado. Além disso, é surdo, tem demência, cai muitas vezes, esbarra em tudo. Mas hoje encontrou estas flores e quis posar assim. É lindo e inocente. Merece tudo”, escreveu.
Percorra a galeria para ver fotografias de alguns dos animais da vida de José Luís Peixoto.