Com uma mão sobre a testa de Jorge, Papa Francisco perguntou-lhe, em italiano, como estava. Ainda que não se assuma como católico, o nervosismo do tutor de Zangão levou-o a responder em castelhano, sabendo da sua nacionalidade argentina, e a “agradecer por tudo o que tem feito por todos”. Esta foi apenas uma das diversas relíquias que marcaram a viagem de um homem cego com o seu cão-guia pela Europa.
Desde sempre que, quando acorda, Jorge liga a rádio TSF e senta-se a ouvir o noticiário. Mal soa o indicativo do final do jornal, Zangão levanta-se histericamente e dirige-se até à taça de comida, sabendo que estará cheia dentro de segundos. É assim a sua rotina diária. E assim se manteve mesmo durante a visita aos seis países.
Jorge nasceu com baixa visão e desde a adolescência que lhe disseram que a cegueira era um cenário esperado. Uma professora do ensino especial até o aconselhou a ter aulas com a bengala, mesmo não precisando na altura.
Em 2015, depois de tentar várias operações que revertessem a situação, o economista acabou por “perder essa batalha”. Tinha 47 anos. Contudo, não deixou que isso o parasse e, apesar de ter tido “um processo de reabilitação muito rápido”, procurou outros mecanismos que lhe dessem ainda mais mobilidade.
Foi então que a mesma professora lhe sugeriu os cães-guia: “Achei estranho, pois nunca tinha visto nenhum”, conta à PiT Jorge Paiva. Após dois anos de muita pesquisa, preparação e alguns obstáculos pelo caminho, Zangão, um Labrador chocolate, finalmente caiu nos braços do economista, e revelou ser um grande companheiro para a vida. Além de acompanhar o tutor nas suas tarefas diárias, o cão-guia mostrou estar preparado para qualquer andança que daí surgisse.
E foi por isso que Jorge começou a idealizar a sua viagem de sonho. Ainda esteve em cima da mesa a América Latina, por se desenrascar com o castelhano, mas foi a Europa a escolhida como destino final. “Estava planeada para junho ou julho de 2020, mas acabei por adiar por causa da Covid-19”: sempre ansiou pelo término da pandemia para marcar a data, mas cansado de esperar, acabou por ir em setembro de 2021.
Apesar do que se possa pensar, a preparação de uma viagem com este calibre para uma pessoa com cão-guia não é muito diferente para alguém que viaje sozinho. Contudo, o tutor de Zangão decidiu jogar pelo seguro.
“Procurei uma agência que me desse algum apoio na marcação de hotéis com cães-guia. Sei que aqui, em Portugal, não é um problema, mas não queria correr o risco de, por exemplo, chegar a Berlim às tantas da noite e de me levantarem problemas”, descreve Jorge Paiva. Desta forma, marcou tudo ainda com os pés e patas bem assentes no País, incluindo o passe de Interrail, que lhe permitiu viajar de comboio por todos os países.
Delineou ao pormenor todos os locais por onde passaria. Começava a viagem em Madrid, em Espanha, depois retornaria a Barcelona, onde já tinha feito Erasmus, passava por Paris, em França e ia até Roma, em Itália. Visitava Berlim, na Alemanha, passava por Estocolmo, na Suécia, ia a Oslo, na Noruega e terminava em Bruxelas, na Bélgica. Tudo isso veio a acontecer, apenas uma semana depois do esperado.

“Quando estava a planear a viagem, vi na televisão alguém que tinha estado com o Papa Francisco, em Roma. Para mim, a pessoa tinha uma história bem mais emocionante do que a minha, mas resolvi tentar a minha sorte”, e assim foi. Sem saber bem o que lhe esperava, foi ao website do Vaticano e tentou perceber se a agenda da maior figura da igreja católica coincidiria com a sua estadia em Londres. Não coincidia.
Por apenas sete dias, Jorge e Zangão falhavam a presença do Papa em Itália e, face a este problema, só havia uma coisa a fazer: “Liguei para a agência e disse que tinham que adiar tudo uma semana. Não ficaram muito contentes, mas lá conseguiram”.
Primeiro passo concluído. Agora, só faltava perceber como se enviava a candidatura, e Jorge quase desesperou quando viu a fila de espera com três meses. Contudo, decidiu enviar na mesma. Pesquisou por contactos e encontrou dois métodos bastante tradicionais: correio e fax. “Isto ainda existe? Não pode ser, tem que haver um e-mail” — de nada levou a procura, pois não existia.
“Onde é que vou encontrar alguém com um fax agora?”, foi então que Jorge se lembrou de uma amiga que trabalhava numa universidade e que talvez o conseguisse enviar. No entanto, a mesma encaminhou-a aos correios, que certamente resolviam o problema: “Fiquei lá meia hora a tentar, uma vezes dava um número impedido, outras que não existia. Até que desisti e meti o formulário dentro de um envelope e enviei-o”, ri-se.
Passado algum tempo, recebeu um e-mail em castelhano a marcar a audiência para o Vaticano e a indicar o que teria que fazer para estar na mesma sala que o Papa. No dia anterior foi buscar o ingresso e, finalmente, no dia 22 de setembro de 2021, depois de tanta sorte bagunçada, lá conseguiu trocar umas quantas palavras com ele, com a ajuda de Zangão, “o cão relações públicas”, como descreve.
As vistas, os sons, os cheiros…
Jorge já tinha vivido em Barcelona (Espanha). Quando estava na faculdade, foi com o programa Erasmus fazer um semestre no estrangeiro, em que os amigos e o ambiente académico só lhe permitiram ver um lado da cidade. Agora, viu-a com outros olhos, mas também com outros ouvidos, outro nariz e outra boca.
“À boleia da liberdade, independência e socialização” que Zangão lhe dava, explorou diferentes sensações, desde os sons das ruas, os cheiros da gastronomia e das pessoas que por ele passavam e a interação com quem se fascinava com o seu cão.
Além disso, encontrou muita gente que também viajava sozinha, sentindo um certo conforto e companhia: “Percebi que não tinha descoberto a pólvora e que há imensos conteúdos sobre isso”. No entanto, há poucos a fazer o mesmo na companhia de um cão-guia.
Jorge sempre adorou passear, mesmo antes de ter Zangão. No entanto, foi na companhia dele que descobriu uma nova forma de ver as coisas. Todas as semanas ia a Viseu visitar um cliente, mas, quando conheceu o amor, as viagens no alfa pendular ficaram cada vez mais frequentes.
O natural de Santa Maria da Feira (Porto) passou a vir a Lisboa uma vez por semana, onde ficava durante todo o fim-de-semana. Chegou a celebrar uma Passagem de Ano em Albufeira, a visitar Portimão, e a navegar pelo Rio Douro. Aventuras que não conseguia guardar só para si e por isso começou a publicá-las no Facebook, onde já tem quase nove mil seguidores atualmente.
O enorme sucesso acabou por desencadear a que estas memórias fossem transcritas para o papel, tendo lançado o livro “Nasci de novo — Como o meu cão-guia Zangão transformou a minha vida”, em que detalha os episódios que ambos viveram, desde o primeiro momento em que se viram: “Nessa sexta-feira de junho de 2017, ao início da noite, saí pela primeira vez sozinho, com o meu cão em trabalho. Com o Zangão, aprendi que o importante não é chegar ao lugar, mas desfrutarmos do caminho até lá”, conta.
A próxima aventura de Zangão e Jorge já está marcada. A dupla viajará para Luanda, em Angola, em novembro, com o objetivo de perceber se a vida com cães-guia em África tem as dificuldades descritas por muitas pessoas.

Zangão e Jorge são perfeitos um para o outro. E não é por acaso
Demorou pouco mais de um ano até Jorge receber uma resposta da candidatura para ter um cão-guia enviada para a Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual (ABAADV). Mas isso foi pouco, quando comparado com o tempo que treinar um cão com estas funções requer.
Aos dois meses, já são avaliados para perceber se servem para esse fim. E quando tal é confirmado, são entregues a uma família de acolhimento responsável por treinar a sua socialização, levando-os a parques, ao local de emprego e a outros sítios, para que se ambientem a pessoas e outros animais.
Concluída esta etapa, é devolvido à ABAADV, sediada em Mortágua (Coimbra), onde são treinados para ser cães-guia, um processo que, segundo o website, custa à volta de 18.000 euros.
Depois, é feita uma triagem de forma a relacionar os perfis dos cães com os dos candidatos, de forma a corresponder às necessidades. Foi desta forma que Zangão chegou a Jorge, pois um cão tão forte como o Labrador castanho só podia guiar alguém que gostasse tanto de andar como o economista.
Jorge lembra-se bem do momento emocionante em que ‘viu’ o seu cão-guia pela primeira vez. Ou melhor, o que esperava que assim fosse: “Apresentaram-me ao Zangão, dizendo que ele seria o meu cão. Ele chegou até mim, olhou para mim e deu meia volta, como se dissesse: ´Muito bem, mas agora vou ali ver outra coisa'”, goza Jorge Paiva.
Após serem selecionados, os cães e donos passam por um estágio de duas semanas para se habituarem. Finalmente, são entregues de forma completamente gratuita, sendo que a ABAADV entrega cerca de 10 cães por ano.
Zangão e Jorge são uma parelha que promete e, se não foram as centenas de quilómetros que andaram pela Europa que os pararam, então ninguém o fará.
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