Reunidos em Congresso esta sexta-feira e sábado, os veterinários portugueses discutem os desafios da profissão e a forma como a sua atividade é olhada pelo poder político e pela sociedade civil. “Somos tremendamente respeitados por muitos cidadãos, porém também insultuosamente destratados por outros”, afirma Pedro Fabrica, eleito Bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários no final do ano passado. O Cheque Veterinário, a redução do IVA nos atos médicos, a utopia de uma rede pública de hospitais veterinários e a contradição entre considerarmos um animal como parte da família mas não estarmos disponíveis para aceitar os custos dos seus cuidados de saúde são alguns dos temas desta entrevista à PiT.
Em dezembro passa um ano desde que foi eleito Bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários. O que é que primeiro ano de trabalho trouxe? Muitas surpresas ou estava ciente do que ia encontrar?
Embora fazendo só um ano de posse em fevereiro, estes dez meses de mandato, deram-nos uma perspetiva total de onde está a Ordem dos Médicos Veterinários, quais as prioridades de mudança a implementar (algumas delas já em aplicação) para que a Ordem consiga representar de forma ativa, presente e com dimensão nacional a profissão e os seus profissionais. Temos vindo a alertar para o papel do médico veterinário e as medidas necessárias para que a medicina veterinária e os seus profissionais possam evoluir e fornecer um ainda melhor serviço aos animais, às pessoas e a Portugal.
Tem sido possível construir pontes com o poder político?
[pausa] A classe política tem poucos representantes com conhecimento em medicina veterinária, e, portanto, tem sido pouco permeável às indispensáveis alterações legislativas que têm de ser feitas para garantir o papel médico da profissão.
Que prioridades são essas?
Existem necessidades urgentes, como a criação de uma carreira especial para médicos veterinários, assegurando a vinculação de profissionais na administração pública; a redução, numa primeira fase, do IVA dos serviços médico-veterinários de animais de companhia para 6%, equiparando ao IVA aplicado às espécies pecuárias e numa segunda fase, isentando de IVA os serviços médico-veterinários, nivelando fiscalmente com as outras profissões médicas. O reforço da recapacitação e renovação da Direção Geral de Alimentação e Veterinária, assim como, a criação de um programa abrangente de gestão populacional de animais de companhia. Existem muitos outros pontos, porém estes são os que elegemos como prioritários para a Ordem neste primeiro ano.
A dignificação da profissão de Médico Veterinário é uma das suas bandeiras para o mandato. Porquê?
O médico veterinário não se sente nem reconhecido nem respeitado pelos órgãos de soberania, nem por vezes pela sociedade. Somos a única profissão médica que tem os seus serviços médico-veterinários inflacionados com IVA. Os médicos veterinários da administração pública, que têm um papel nuclear na segurança sanitária alimentar e saúde pública, não têm uma carreira, sendo vistos como simples técnicos superiores. É exigido aos médicos veterinários municipais que resolvam a problemática do abandono animal sem meios e sem uma estratégia central, que está altamente politizada. Os médicos veterinários das Organizações de Produtores para a Sanidade Animal vivem na incerteza do recebimento do valor das verbas necessárias para garantir a aplicação dos programas de erradicação e vigilância de doenças dos animais, fundamentais para garantir o fornecimento de alimento de origem animal e forte contributo para a balança comercial do País. Mas posso dar-lhe mais exemplos: os médicos veterinários liberais, sobretudo dedicados a animais de companhia, são constantemente pressionados para a cedência gratuita de serviços médico-veterinários por impreparação financeira dos seus detentores em nome de um direito “inalienável” de deter um animal.

Como se muda esse estado de coisas?
A Ordem dos Médicos Veterinários está empenhada na dignificação da profissão, de dentro para fora, entre pares, entre profissionais da Uma Só Saúde, na sociedade e nas diversas instituições nacionais e internacionais, e acima de tudo, no poder político. Considero que o poder político tem sido o grande travão à evolução da saúde animal no nosso País.
Por mais que os médicos veterinários evoluam, não conseguiremos ir mais longe ou mais depressa se não formos realmente considerados como médicos, veterinários, que somos. Citando Louis Pasteur: “O médico cura o homem, mas o médico veterinário cura a humanidade”.
“Estamos aquém do reconhecimento e reconhecimento que realmente merecemos”
E isso reflete-se na forma como os portugueses olham para a classe?
Claro que sim. Mas creio que há uma grande diversidade de opiniões. Não havendo um estudo à data, sobre esse aspecto, mas recebendo as opiniões dos diversos amigos, colegas de profissão e membros da OMV, somos tremendamente respeitados por muitos cidadãos, porém também insultuosamente destratados por outros. O sentimento predominante da classe é que estamos aquém do reconhecimento, respeito e dignificação que realmente merecemos.
Não sente que há um certo enviesamento da percepção da importância dos médicos veterinários por parte da sociedade: por um lado, são os salvadores dos nossos animais — e por isso há sempre uma grande gratidão — mas por outro lado, são acusados de praticar preços proibitivos para muita gente. Como é que se resolve esta questão?
A área da saúde, seja ela, a animal ou a humana, assenta em uma complexidade de processos e de equipas multidisciplinares, de atualização constante de conhecimento, da inovação de tecnologia médica, que em conjunto tornam a estrutura do valor dos serviços médicos que leva em linha de conta estas diversas rubricas. Quando dizemos que é proibitivo ir ao médico veterinário, estamos a comparar com o Serviço Nacional de Saúde, custo esse que sai das nossas contribuições individuais. Ora, se os animais são na esmagadora maioria considerados como membros da família, em alguns casos, como filhos, achamos proibitivo, por exemplo, pagar 500 euros por uma cesariana para uma cadela de grande porte, e aceitamos pagar cerca de 5 mil euros (dez vezes mais) por uma cesariana em medicina humana. Onde ficamos? Decidimos elevar o nosso animal de companhia a membro de família, mas depois exigimos cuidados médico-veterinários de baixo valor, colocando em risco a vida do animal? Ou será que o conhecimento do médico (medicina humana) é dez vezes superior ao conhecimento do médico veterinário? Ou a técnica cirúrgica da cesariana é dez vezes mais complexa em medicina humana do que na medicina veterinária? Não, não são! Este é um exemplo, entre os milhares de procedimentos médicos e cirúrgicos existentes e comparáveis entre ambas as medicinas.
“Ter um animal é um dever, não um direito”
Acha que os tutores desvalorizam os custos veterinários na hora de pensar em ter um animal?
Não me cabe fazer juízos de valor, mas no fundo, o que acho que está em causa, é a facilidade de quem facilmente toma a decisão de deter um animal, sem pensar que terá despesas financeiras, sendo a principal despesa com a alimentação, depois com a prevenção de doenças através da desparasitação e vacinação e finalmente com os cuidados médicos necessários em caso de doença. Alguns colegas relatam-me chocados, terem detentores de animais a reclamar de uma conta de 200 euros na receção de sua clínica veterinária, enquanto usam o seu telemóvel de 900 euros para denegrir o médico veterinário nas redes sociais. Obviamente, que não teço considerandos onde cada um gasta o seu dinheiro, mas ter um animal, acredito ser um dever e não um direito, o qual eu exerço e depois os demais que tratem de garantir as suas necessidades. Decidir deter um animal é um dever para com o animal que a partir dali depende de nós, para tudo.
Por outro lado, acredito também que o médico veterinário tem de fazer a sua parte de valorização do seu trabalho, assim como de explicação do seu valor. Para isso, necessita de comunicar de forma mais eficaz sobre o real valor dos seus serviços, envolvendo o detentor na tomada de decisão dos tratamentos. Se o fizer, a grande maioria dos detentores vai entender o valor do seu trabalho, e mesmo custando ao detentor pagar a despesa feita (devido aos baixos salários mínimo e médio do País), pagará com mais compreensão e menor intolerância.
A redução do IVA nos atos veterinários pode ser mesmo uma solução, ou acha que isso não se vai refletir numa efetiva redução do valor dos serviços?
Na minha opinião reflete-se de diversas formas. Acredito que haverá redução de preços em algumas zonas do País, assim como redução em alguns atos mais essenciais e comuns. Acredito também que irá abrandar a subida de preços.
Repare: a maioria dos médicos veterinários não tem equiparado a subida de preços dos seus serviços com a inflação, são classicamente subidas muito baixas ou não têm atualizado os preços. As empresas veterinárias, na sua maioria microempresas, estão esmagadas em termos de margem líquida. Temo que a curto prazo possa vir a haver uma subida generalizada de preços, que terá seguramente impacto no dia-a-dia dos detentores. Por essa razão, defendemos numa primeira fase, a redução de IVA para 6% dos serviços médico-veterinários em animais de companhia, igualando ao IVA aplicado aos serviços médico-veterinários para as espécies pecuárias. Esta medida irá seguramente abrandar ou mesmo evitar essa esperada subida de preços.
O abandono de animais e o número cada vez maior de animais em risco levou a Ordem dos Médicos Veterinários a criar o Cheque Veterinário. Em que consiste?
O cheque veterinário é o embrião do Serviço Nacional de Saúde Animal. Criado em 2017 a partir de um projeto inicial chamado VetSolidário, atualmente consiste numa rede solidária de mais de 400 Centros Veterinários de amplitude nacional (continental e insular) que presta serviços médico-veterinários aos municípios aderentes. A mecânica do Cheque Veterinário é simples. Os municípios aderentes identificam os detentores carenciados, assim como os animais alojados em Centro de Recolha Oficial necessitados de cuidados médicos e cirúrgicos, a quem é atribuído pelo próprio município, um cheque veterinário que lhes permite aceder a um dos Centros Veterinários aderentes para que possam receber os necessários cuidados. A Ordem é um facilitador de todo o processo, servindo de elo ligação, garantindo que os serviços prestados são semelhantes independentemente da região e do animal. A rede solidária Cheque Veterinário existe graças aos municípios e centros de atendimento médico-veterinários aderentes.

“A criação de uma rede pública de hospitais veterinários custaria cerca de 50 milhões só no primeiro ano”
Há quem defenda, precisamente, a criação de um SNS para os animais. Acha que é algo fazível ou não passa de uma quimera?
Eu diria que a rede solidária Cheque Veterinário é o mais aproximado a um SNS Animal e que com o devido reforço e apoio estatal, pode suprir as necessidades dos detentores carenciados. Mas os contribuintes portugueses têm de ter noção que a criação de um SNS Animal, numa estimativa grosseira, pode custar só no primeiro ano mais de 50 milhões de euros ao erário público.
Como é que chegou a esses números?
É uma estimativa grosseira, como lhe disse. Mas estamos a falar de um hospital por distrito, cada um com cerca de 15 profissionais na área da medicina veterinária, incluindo enfermeiros e auxiliares. A construção de estrutura, meios tecnológicos e manutenção anual daria um total de 18 Hospitais continentais e 2 nas regiões autónomas, que só no primeiro ano daria os tais cerca de 50 milhões de euros ao erário público, para não falar nos 300 profissionais necessários para garantir o funcionamento 24 horas de cada estrutura, numa profissão sem carreira especial de médico veterinário e sem contrato coletivo de trabalho.
Acredita na concretização de uma empreitada dessas?
Acho que seria um tremendo ato de fé acreditar-se que esse modelo de hospitais públicos resolve os problemas dos detentores de animais, com dificuldades em garantir os cuidados médico-veterinários dos seus animais. Se os estimados 50 milhões forem investidos num programa nacional de gestão populacional de animais de companhia e no cheque veterinário, com adesão de mais municípios, acredito que estaremos mais perto de ajudar quem precisa e diminuir substancialmente o número de animais errantes.
A saúde mental é hoje um tema na ordem do dia, cada vez mais falado, sem preconceitos pelos portugueses. E os dados não mentem: a questão é séria também entre os profissionais desta área. O excesso de horas de trabalho e a privação de sono são problemas apontados. Isso preocupa-o?
Muito. Dezenas de estudos científicos nacionais e internacionais provam inequivocamente que ser médico veterinário, por incrível que pareça para quem lê, causa maior desgaste físico e emocional do que a profissão médica (medicina humana) e mesmo profissões no âmbito de forças da autoridade. Comparativamente aos restantes médicos veterinários na Europa, Portugal tem os maiores índices de stress laboral veterinário. O que não é de espantar, pelo que expus anteriormente. 55% dos médicos veterinários que deixam de praticar em Portugal vão para o estrangeiro e 35% simplesmente desistem da profissão, deixam de ser médicos veterinários devido à exaustão, condições laborais e falta de perspetiva de carreira.
Quais os efeitos dessa desses números?
Bem, para lá dos efeitos para os próprios, a crise de contratação já é transversal em diversas áreas, com maior expressão na área da Clínica e Cirurgia de Animais de Companhia, onde existem cada vez menos hospitais veterinários, pois não garantem as urgências noturnas. Mas também em Clínica de Espécies Pecuárias, Inspeção Sanitária, Médicos Veterinários Municipais. Por essa razão, estamos determinados a falar destes temas e pedir ações efetivas para evitar um problema maior de falta de serviços médico-veterinários em Portugal a médio prazo. Portugal é o 5.º país da Europa em médicos veterinários formados por mil habitantes. Portanto, o problema não está no número de estabelecimentos de ensino de medicina veterinária. O problema estão em convencer que os formados em Portugal queiram cá trabalhar.
A PiT foi criada há dois anos e meio e tem vindo a trabalhar junto de associações de bem-estar animal e a promover a dignidade e respeito pelos animais e as adoções responsáveis. De resto, em breve vamos trabalhar em projetos conjuntos com a Ordem dos Médicos Veterinários. Como viu o surgimento de uma revista digital dedicada aos animais, de grande consumo e destinada à família?
É muito importante que haja meios de informação, com conteúdos validados cientificamente e com uma linguagem adaptada ao seu perfil de leitor, contribuindo para a literacia em saúde animal. Penso que a PiT afirma-se nesta área e seguramente com a parceria com a Ordem dos Médicos Veterinários iremos fazer mais pela educação e conhecimento da sociedade nesta apaixonante área da saúde animal.
Aliás, a Ordem dos Médicos Veterinários também estará presente no domingo na Lisboa PiT Party, nos Jardins de Belém. É importante para os médicos veterinários estarem junto dos portugueses, num evento organizado pela PiT, pela Câmara de Lisboa, pela Casa dos Animais de Lisboa e pela Liga Portuguesa de Defesa do Animal?
Os médicos veterinários estão diariamente com os portugueses, em todas as áreas onde exercem. O médico veterinário tem um papel marcantemente social no contacto com as famílias. Obviamente, se nos eventos dedicados aos animais, podermos ter médicos veterinários, reforçarmos ainda mais os laços desta trilogia de médico veterinário – detentor – animal.
De seguida, carregue na galeria e veja alguns médicos veterinários em ação.































